Conversa
de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) –
6/8/1983 – Sábado [Conversa de Sábado à
Noite 047, 048 e AC VI 83/08.07] – p.
Conversa de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) — 6/8/1983 — Sábado [Conversa de Sábado à Noite 047, 048 e AC VI 83/08.07]
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Enquanto no mundo material o equilíbrio é o repouso, no
mundo das almas todo equilíbrio é um esforço * Como Deus tem em si todas as perfeições em todos os graus possíveis, uma hierarquia de criaturas rende-lhe maior glória do que uma igualdade de seres excelentes * Fazer brilhar sua mediania: nobre ambição dos medianos * A algumas almas Deus pede renúncia à estabilidade e esforço rumo ao píncaro; a outras pede aprimoramento na mediania * Aos grandes, Deus pede também flexibilidade para passar da mediania para a grandeza e da grandeza para a mediania * O equilíbrio não está em negar nem em exagerar o valor da mediania, mas em aceitar seu magnífico papel, ou então entrar na grandeza, disposto a cair na desventura trágica * Ambicionar grandezas desproporcionadas gera anemia, desejar coisas microlóticas gera apoplexia — O equilíbrio é uma cruz, mas o desequilíbrio é um inferno * Um paradoxo: o homem destinado pela Providência para abrir a marcha rumo ao píncaro dos píncaros que é o Reino de Maria, lutou na infância contra a tentação de se mediocrizar
É claro, é o deão presente.
Entra aqui, Paulo Henrique. Como vai você?
Arranjem uma cadeira para o Sr. Paulo Henrique.
Vamos fazer o contrário: em vez de ele fazer perguntas, crivamos a ele de perguntas sobre Roma.
Então, meu Paulo Henrique, você chegou a menos tempo e vem de mais longe. Diga o que você quiser…
(Sr. Paulo Henrique: Eu estou atento para ouvir. Certamente o senhor tem tratado de alguma seqüência de assuntos que o senhor gostaria de dar continuidade hoje.)
Não tenho propriamente tratado de uma seqüência.
Meu caro Nelson, você então.
Eu devo começar por dizer que fico desolado a começar nessa hora, mas fui jantar à meia-noite.
* Enquanto no mundo material o equilíbrio é o repouso, no mundo das almas todo equilíbrio é um esforço
(Sr. João: […] Outra coisa que se comentou em Jasna Gora em face de uma reunião que o senhor fez no MNF em fevereiro, em que o senhor mostrava como decaiu a Idade Média. Porque a Idade Média deveria ter atingido o patamar já do gótico, dos vitrais, do órgão, do gregoriano, ela deveria ter ou dado um passo ainda acima, na linha beneditinização ou cistercienizar-se. Mas que sempre que se chega a um auge de perfeição, ou há uma cirtercienização, ou há um passo a mais que a pessoa tem que dar. Caso contrário, apodrece.)
É bem verdade. Eu vou tentar tomar a questão por um lado em que… Uma certa experiência me dá a impressão de que as elucubrações mais recentes vêm sempre acompanhadas também de uma graça mais recente. Ou, se não é sempre assim, ao menos é com uma certa freqüência assim. E estou com uma elucubração recente no espírito. Não é a descoberta da pólvora, é uma coisa mais modesta. É, não sei, uma polvorazinha, nem isso. É alguma coisinha que eu descobri, mas que nos interessa e que eu vou falar agora em relação ao que você acaba de dizer.
Há na obra toda de Deus, em matéria de perfeição, exatamente um matiz, uma forma de equilíbrio extraordinária. Esse equilíbrio exige das almas, por sua vez, um equilíbrio muito grande. E é porque as almas com facilidade e com agrado perdem esse equilíbrio, porque neste vale de lágrimas todo equilíbrio é esforçado. Esse princípio é preciso não esquecer.
Equilíbrio é, por exemplo, eu coloco a bengala aqui e ela pára, sem oscilar. Ela está em estado de repouso. Ela estava em estado esforçado, enquanto se movia. Equilíbrio é o repouso. E nós somos levados a transportar isso para o mundo das almas.
Com as almas é o contrário: o estado difícil é o equilíbrio e o estado de repouso — conforme se entende o repouso — dá em desequilíbrio. É diferente.
Em torno disso, os senhores não calculam a quantidade de tentações que saem, e depois de derrapagens, de toda espécie de gagueiras. Naturalmente com vantagem da Revolução, que tira proveito disso com a astúcia que nós sabemos.
* Como Deus tem em si todas as perfeições em todos os graus possíveis, uma hierarquia de criaturas rende-lhe maior glória do que uma igualdade de seres excelentes
Vamos aprofundar o conceito.
Deus poderia ter feito um Céu só de arcanjos? Quer dizer, Ele criou todas essas hierarquias celestes. Ele poderia ter feito um Céu mais perfeito, fazendo com que todos os anjos fossem arcanjos? E, portanto, por conseqüência, o Céu seria muito mais esplendoroso?
Há uma porção de aplicações disso, por onde o espírito moderno diz que sim.
Por exemplo, uma pinacoteca. Se eu tenho um quadro — eu vou dar o nome de grandes bonzos, dos quais eu não sou um grande admirador — de Rafael, de Michelangelo, de qualquer desses, um quadro deles, e depois tenho uma série de quadros mais modestos, o conceito seria, para constituir a minha pinacoteca, que eu vendesse os quadros mais modestos e que eu comprasse um outro Rafael. E tivesse na minha sala só dois Rafaéis de sensação. E minha sala seria reputada uma sala perfeita. Enquanto eu tendo um quadro de Rafael, mais um de um discípulo de Rafael, outro de um discípulo do discípulo do Rafael, e um outro de um admirador do século passado, se teria isso em conta de baixa de nível e, portanto, um defeito de minha pinacoteca.
Uma pessoa numa ocasião, visitando-me na Rua Alagoas, olhou aquelas salas, aqueles móveis, etc., gostou e me disse: “Eu se fosse o senhor não faria isso. Ainda mais agora que Da. Lucilia morreu. Eu comprava um apartamento pequeno, de um quarto e uma sala só, eu vendia todos esses móveis e tudo isso que está aqui, e com esse dinheiro eu comprava, para pôr nessa sala pequena, apenas um terno e um quadro de um pintor de museu, um tapete persa de museu, e uma cortina de seda de museu. E diria: ali é um apartamento!”.
É uma tendência muito vincada no espírito moderno. E os senhores conhecerão uma porção de pessoas em torno de si, conhecerão uns laivos dentro de si que caminhariam para isso como sendo a fórmula!
Isso tem relação com a questão dos arcanjos.
Não era melhor Deus criar menos anjos e criá-los todos arcanjos? E para Deus, que não tem finanças, que é dono de tudo, Ele não poderia ter feito tantos arcanjos quanto fez anjos? E ter um Céu só de príncipes, muito mais brilhante e numeroso do que é o Céu que Ele tem? Por que Ele constituiu esta catarata de situações?
São Tomás de Aquino explica muito bem.
É que como Deus tem em si todas as perfeições em todos os graus possíveis, é da glória d’Ele que estes graus se externem nas criaturas! Portanto, Ele é mais glorificado com uma criação hierárquica — menos selecionada no total de seus membros, mas em dégradé — do que Ele seria glorificado por uma criação só de arcanjos.
O que facilmente nós constatamos no reino animal. Deus é mais glorificado havendo seres como o colibri e seres como o leão, do que ter um universo só de leões ou só de colibris.
Alguém diria: “Bom, mas Deus não poderia fazer um ser animal mais perfeito, que tivesse em si as sínteses de tudo que Ele pôs no reino animal?”.
A resposta seria: tendo os elementos dessa síntese separados, esses elementos brilham mais e dão mais glória a Deus, do que estando unidos num elemento só.
E o mesmo se dá então com a hierarquia das pessoas, a hierarquia da sociedade humana. A sociedade humana deve ter uma porção de classes sociais desiguais, e dentro das classes, pessoas desiguais. Deve ter uma porção de hierarquias que não apenas a social: hierarquia da virtude, hierarquia do talento, hierarquia da capacidade, hierarquia de mil outras coisas que se entrelaçam harmoniosamente. E é de todas essas hierarquias, jogando em polígono, que se ressalta a idéia de uma perfeição d’Ele.
A primeira posição é um tanto calvinista, seca: só o perfeitíssimo, resumidíssimo, em ter as coisas fantastissíssimas, mais nada.
Diga ele que a maldade brasileira não tem limite, que a terra da bondade é a terra da malícia. Algum dia eu arranjo para os senhores uma estampa de Calvino, para verem.
Você conhece, não é? Mas representa isso.
(Sr. Nelson Fragelli: Não, não conheço.)
Ah, mas valia a pena, valia a pena. É isso. E há um quadro célebre representando a morte de Calvino, que também é uma coisa fantástica, como símbolo.
* O valor da mediania no primeiro Andar
Em geral quando se fala muito de síntese, quando se fala muito de sobriedade — não é sempre, mas em geral — o que entra não é cistercianismo, não, é calvinismo. Uma coisa fantástica..
Por exemplo, a tal sala do amigo meu: dois ou três móveis, um sofá e uma poltrona, mas fantásticos; dois quadrinhos, mas de deixar cair o queixo de qualquer um, bem pintados; seda e tapete de museu; tudo bem pequenininho… Está feita a sua sala.
Para mim isto não é nada! Eu prefiro os móveis medianos em que viveram meus avós, a propósito dos quais eu posso contar pequenos episódios da ascensão e da história vária de minha família. Eu prefiro isso. Tem muito mais significado do que duas ou três coisas compradas num antiquário, de arrebentar queixo, com atestado pendurado.
Alguém me diz: “Mas representa muito mais dinheiro”.
Está bom, então faça um barbante com aquelas coisas de pendurar roupa no varal e cheques. Prova de um coração deslumbrante… Porque se é para bancar o rico, a forma está encontrada: é só ter dinheiro no banco.
* Fazer brilhar sua mediania: nobre ambição dos medianos
Então acontece que, para uma pessoa colocada num estado intermediário, em qualquer dessas hierarquias, por exemplo, uma pessoa de uma inteligência média — eu vou simbolizar daqui a pouco essa pessoa —, se cria um problema:
O homem de inteligência média deve fazer esforço titânico para a dilatar a inteligência — porque a inteligência é dilatável — até ser um homem de inteligência saliente? E se ele não conseguir isso, ele deve ter a inteligência como nada? Deve renunciar ao cultivo dela? Deve ser um motorista de caminhão fabuloso, a ser um homem de inteligência média? Qual é o papel das médias dentro desse assunto?
Isso se responde da seguinte maneira:
A pessoa de inteligência média, o que deve fazer de sua inteligência? Com a sua inteligência média, ela é capaz de ver píncaros aos quais ela não é capaz de subir. O que ela deve fazer? Do ponto onde está, ela deve olhar para os mais altos píncaros, com enlevo, com gosto, com contentamento. Porque, ao contrário do que se dá fisicamente, quando uma pessoa admira algo de muito mais alto, sem se equiparar àquilo que admira, de algum modo se assimila àquilo que admira! Sobe pela admiração. A pessoa sobe não ao píncaro que admira, mas sobe muito acima do vale onde está!
Há, portanto, uma possibilidade de nobilitação das situações médias, por onde, sem deixar de ocupar uma situação média, uma família, por uma longa sucessão de gerações numa situação média, confere àquilo uma dignidade que participa do píncaro, sem ser píncaro. E aquilo tem uma beleza própria.
Em outros termos, o médio tem uma elasticidade própria que não é indefinida. Esta elasticidade, ele pode aumentá-la, se bem que não indefinidamente. Chegar a todo esse limite dessa elasticidade, promove o médio para outro grau! E assim as gerações que se sucedem vão acumulando história de uma ascensão lenta, que não se sabe até onde se pode chegar. Explorar uma situação média sem sair de dentro dela, mas levando-a a toda sua glória, pode ser a nobre ambição de um homem.
(Sr. Nelson Fragelli: Pode repetir, por favor?)
Explorar uma situação média, levando-a a toda sua glória possível, sem sair dela, e cumprindo a missão do médio, pode ser uma ambição nobre de um homem.
Eu dou um exemplo.
Imaginem um pintor que tem talento para ser um pintor médio. Ele tem possibilidade de ganhar o que ganha um pintor médio. Ele pensa: “Eu por um grande esforço posso fazer pinturas — que sempre serão médias — muito excelentes. E uma porção de famílias, uma porção de instituições, uma porção de ambientes para os quais eu trabalharei, ficarão mais excelentes porque essas pinturas ficaram mais excelentes dentro da linha do médio. Eles são médios, eu sou médio. Nós não vamos sair de nossa mediania, mas nós vamos elevar essa mediania ao mais excelente grau de si mesma. Eu como pintor concorri”.
Um outro é um artista. Ele não dá um artista para ser contratado pelo Metropolitan de Nova Iorque para cantar, ir ganhando fábulas e depois deixando 90% de imposto de renda… Bem, ele não faz isso. Mas ele pode ser um excelente cantor, um excelente músico de festas médias de boa qualidade, de muito bom tonus. E as coisas de bom tonus — médias — podem ter um tonus muito bom.
Imagine uma cidade de importância financeira média, importância geográfica, importância econômica, importância histórica, tudo médio, onde tudo seja levado ao primor do médio. Então, por exemplo, uma instituição dá uma festa nessa cidade e tudo é médio. Mas de um tonus de médio excelente. O brilho por onde a coisa média se insere no circuito da glória de Deus aparece excelentemente. Fazer brilhar assim o médio, e até o submédio ou o pequeno, deve ser uma nobre ambição de todo aquele que está numa situação média.
* A algumas almas Deus pede renúncia à estabilidade e esforço rumo ao píncaro; a outras pede aprimoramento na mediania
A algumas almas Deus pede mais. Deus passa e diz: “Meu filho, presta atenção em ti e vê que em ti eu depositei o ótimo! E que quero de ti que faças um esforço para chegar àquele píncaro, onde teus iguais não chegam. Vê a dignidade, a estabilidade, a continuidade, a tranqüilidade, o desanuviamento da condição média. Eu te peço a renuncia a tudo isso. Entra na borrasca, por amor a mim e não por amor a ti, e sê um herói. Passa pelos insultos, pelos desprezos. Revida com altaneria. Caia no chão reduzido a verme, e se levante rugindo como um leão! Leão, saiba tomar cuidado com todo mosquito venenoso como se fosse um dragão, e saiba enfrentar o dragão como se o dragão fosse um mosquito!”.
No meu longo trato com as almas, eu tenho visto que é preciso um equilíbrio especial para a gente tomar a seguinte posição, que pouca gente toma:
Se eu sou médio, eu fico bem aí, não tenho desejo de subir individualmente. Tenho vontade de melhorar essa condição, não para me enfeitar, mas pelo bem que há nisso e porque isso dá glória a Deus. E quero trabalhar valentemente para a dignidade de um bom quilate de uma coisa mediana.
* Aos grandes, Deus pede também flexibilidade para passar da mediania para a grandeza e da grandeza para a mediania
Mas se Deus me fez grande, eu abandono de bom grado tudo isso e entro dentro da tormenta. Portanto, se Deus quiser isso de mim, eu com freqüência passarei da mediania para a grandeza, e da grandeza para a mediania, absolutamente como Ele quiser! E na flexibilidade e na elasticidade desse molejo, aí estará a minha grandeza!
Quer dizer, se em certo momento de minha vida Deus me diz: “Meu filho, entra na borrasca”, eu entrou na borrasca. E pouco depois, se acontece uma desgraça e eu sou nomeado terceiro datilógrafo de uma pequena repartição do interior, eu me ponho na minha máquina de escrever e me ponho a fazer bonitos ofícios, bonitas composições, ser um excelente datilógrafo, com flexibilidades. Deus quis, aqui está a máquina bem batida para a glória d’Ele!
Quando eu começo a me habituar às despreocupações e aos confortos da insignificância, o vento arrebenta e entra pela minha janela adentro! A borrasca me chama, eu pego a espada e entro para dentro dela!
Esta devia ser a posição de todos nós, a disposição de espírito de todos nós. Houve alguém com um A maior do que todo o universo que disse: “Ecce ancillae Domine, fiat mihi secundum verbum tuum! — Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!”. E outro alguém com A ainda maior que disse: “Fiat voluntas tua com mea!”.
* Duas posições erradas: ser chamado à grandeza mas apetecer a mediania; julgar sua mediania uma injustiça da Providência
Nesse jogo grandeza-mediania, a elasticidade deve ser completa.
Ora, acontece que exatamente o contrário é o que eu tenho visto. Almas chamadas pela grandeza, e pavorosamente tentadas pela seguinte idéia, que elas não exprimem em termos filosóficos, mas é o que está no fundo da cabeça: “É bonito, é bom eu levar esse estado de mediania aos seus últimos limites. Eu não aspiro a grandeza, porque eu estou engajado nessa partida. Pus os limites de minha competição nessa luta, que é de minha estatura e para a qual eu sou feito. Por que querer tirar-me daqui e pôr-me numas alturas que não me atraem?”.
Mas sabem que há disso, inclusive em matéria de ambição. Há gente que prefere, por exemplo, ter um automóvel velho, que conserva primorosamente e que todo fim-de-semana passa lavando e brincando com aquele automóvel, para ter a alegria de ter um automóvel velho e mediano bem conservado, do que se lhe dessem um Rolls Royce. E se obrigarem a andar de Rolls Royce, anda emburrado e contrafeito, porque quer ter aquele automóvel, para passar a vida inteira…
E há muita gente que foi chamada pela Providência para ter o automóvel velho e que passa a vida inteira sonhando com o Rolls Royce. E se julga objeto de uma injustiça porque não tem um Rolls Royce.
Há as duas coisas.
Por que há essas duas coisas? É porque falta essa noção primeira da excelência dos graus diversos, que isso é excelente.
Um calvinista que quer tudo no teto, ou ele se põe no teto, ou ele perde a razão de ser. Ele perde a face diante de si mesmo.
Não é como aqueles amáveis amadores que eu vi outrora, caseiros, de pintura, de música, etc., em que a gente entrava na sala um tanto caipirota, a almofada era uma flor enorme feita pela dona da casa, e o dono da casa tocava flauta ou violino, e eles se ofereciam candidamente para distrair seus amigos tocando flauta ou mostrando como era bonita a flor feita pela dona da casa.
Achava isso muito mais encantador do que a coisa comprada numa loja e posta ali. E quando querem ouvir flauta, ouvem rádio, disco, vitrola, ouvem um disco do flautista tá-tá-tá, em geral ta-tá bom. Ou é isso ou é nada. E a pobre flauta do bom amador caseiro, que gostaria de comunicar as suas emoções, que gostaria de ser entendido e apreciado, é nada porque não é perfeitíssima.
E esses apreciadores de perfeição valeriam muito mais se compreendessem um amador caseiro da estatura deles, do que pretender entender o tal que não está proporcionado a eles.
* Não aceitar tarefas superiores à própria estatura é não ouvir a voz de Deus que sopra pela voz da obediência ao Fundador
Então acontece que em geral, como não existe a idéia desse equilíbrio e não existe a idéia da beleza dessa elasticidade, isso se reflete dentro de nossa vocação.
Com muita freqüência me acontece de eu propor, com muita freqüência, a membros do Grupo tarefas que eles julgam a léguas acima de si mesmos. Por causa disso tomam uma certa birra da tarefa e não executam quando seriam capazes de executar! É a raiva da mediania dizendo: “Eu não sou obrigado a fazer esse esforço, eu não quero tender a chegar lá em cima, eu acho que assim está muito bom. E quero que você se contente com isso, como eu me contento. E está acabado”.
Eles não compreendem que pela voz da obediência soprou sobre eles a voz de Deus e que é Deus que está chamando para outra coisa! Não compreendem isso!
Às vezes são uns medíocres de temperamento. Não têm a força para querer. A gente diz: “Entre na borrasca”, ele diz: “Tanto assim não! Se fosse uma borrasca meio de teatro, que venta mas não derruba, eu estaria pronto para fazer o papel de herói. Mas assim como Dr. Plinio pretende? Assim eu não quero. Nem consigo. Há um equívoco. Eu não ouso dizer não a ele, porque minha consciência me acusaria. Não ouso dizer sim, porque minha mediania se revolta. Eu não quero ser esticado dessa maneira”.
Ele não compreende. Ele está recusando a voz de Deus.
* O equilíbrio não está em negar nem em exagerar o valor da mediania, mas em aceitar seu magnífico papel, ou então entrar na grandeza, disposto a cair na desventura trágica
Há duas formas de tentação de mediania.
Uma forma é dizer: “Eu não preciso ser tudo isso para ser supremo. Como eu sou já supremo para o ambiente meu, portanto, não quero crescer mais do que isso. Estou encantado comigo. Olha a FMR o que acha de mim”.
Outra forma é dizer: “Eu não sou mesmo supremo, não me iludo, mas não quero ser. Eu posso ser excelente não sendo supremo. Por que Dr. Plinio vai querer que eu seja supremo?”. Nessa tentação o indivíduo perde de vista, ele exagera a importância do princípio de excelência da mediania.
Agora, há outras a quem eu chamo e digo: “Faça tal trabalho mediano”. Eu vejo na cabeça assim: “Então, hein? Este brilhante de primeira ordem, você coloca na parte de trás de sua coroa, quando você poderia colocá-lo no centro da cruz, onde os dois braços se encontram, no alto de sua coroa. O Kohinor que está aqui, você não conhece, hein? Que erro de sua parte! Onde está a sua psicologia?”.
Acontecem essas coisas.
Mas é que este nega completamente o valor da mediania, enquanto o outro exagera. O equilíbrio é compreender o papel da mediania, o magnífico papel da mediania, aceitá-lo, ou entrar na grandeza, ou cair nas magnificências da desventura trágica e da ruína, indiferentemente, como manda Deus. Essa é sobretudo a nossa vocação.
Eu acho que essa explicação, na medida em que a gente se lembra dela, concorre para a gente tomar essa elasticidade. Mas não é fácil fazer. Porque isso exige exatamente um equilíbrio de alma — nós voltamos à noção de equilíbrio — do qual procede o equilíbrio dos nervos.
Se uma pessoa a vida inteira quer coisas proporcionais, imensas ou não, conforme as forças e o chamado que Deus lhe dá, ela realiza o equilíbrio interior. Mas com que sacrifício, com que desapego!
* Ambicionar grandezas desproporcionadas gera anemia, desejar coisas microlóticas gera apoplexia — O equilíbrio é uma cruz, mas o desequilíbrio é um inferno
Esse equilíbrio é como uma cruz. Se a pessoa quer coisas desproporcionadas, ela acaba nervosa. É necessário, ela acaba nervosa. Porque se ele quer uma coisa microlótica, ela sente uma sobra de possibilidades em si que envenenam.
Seria mais ou menos como uma espécie de apoplexia. A pessoa tem demais sangue. E se ela quer coisas grandes demais, ela fica como que anêmica, ela não tem sangue suficiente para aquilo que ela quer.
E acaba sendo que esse equilíbrio é, portanto, uma posição de cruz. E o outro também tem uma porção de sofrimento.
— Como é que se ousa dizer então que a prática da virtude traz menos sofrimento do que a prática do pecado? Se um e outro sofrem, Dr. Plinio, então eu quero perguntar porque razão se diz que a paz acompanha quem pratica a virtude e a agitação o que peca. É paz, sim, mas de que jeito? Com os pregos transfixando as mãos e os pés? Compreendo essa paz. Mas que paz, hein? O senhor chamar isso de paz, faz favor, hein?”.
Há uma fórmula que diz tudo: ou a gente está como Nosso Senhor na cruz, ou está como o demônio no Inferno. Porque este equilíbrio é participante da cruz, e a agitação dos outros é participante do Inferno. Quem é que sofre mais? Quem ousaria a ter esse frase maldita: “O sofrimento infernal de Nosso Senhor Jesus Cristo?”. Seria um doido, um blasfemo, um bandido.
Eu coloquei na primeira linha um doido, porque pode se dizer daquele sofrimento tudo, mas que ele tinha a agitação, o tormento irremediável e lancinante do Inferno, não tinha!
E aqui fica explicado porque, ainda que considerando as coisas do ponto de vista terreno, o estado em que se sofre menos é o desse equilíbrio.
Esta vida é um vale de lágrimas e sofre-se o tempo inteiro enquanto se vive. Uma das maiores mentiras da Revolução é obrigar as pessoas a ostentar a cara de que são felizes. Porque nesta terra há alegria, não há o que se chama de felicidade. Esse estado em que só há alegria e que não há desgostos profundos também.
E ainda do ponto de vista da vida terrena, o melhor que há para fazer é adquirir esta elasticidade imensa por onde Nosso Senhor saiu do Domingo de Ramos e foi para o Horto das Oliveiras… sem a menor hesitação. Entrou triste no Domingo de Ramos e conservou — diz São Francisco de Sales — a alegria na fina ponta da alma d’Ele, até o “Eli, Eli, Lama Sabactani? — Meu Pai, meu Pai, porque me abandonaste?”.
Meus caros, só esta meditação, feita, por exemplo, às vezes, só esta ajudava a pentear as nossas vidas tantas vezes despenteadas, e nossos interiores tantas vezes postos em torvelinhos. Só isso. Esta santa elasticidade!
Meu Nelson.
* Se viesse a trocar os sucessos e dramas da alta sociedade, pelo sossego e piedade dos corcundinhas do largo do Coração de Jesus, o Sr. Dr. Plinio se acomodaria perfeitamente
(Sr. Nelson Fragelli: Sim, Sr. Dr. Plinio. O senhor poderia dar algum exemplo da infância ou da mocidade do senhor sobre essa elasticidade, para que assim fixe em nós esse…)
Eu contei uma vez, mas eu acho que vários dos que estão aqui não estavam presentes, o seguinte:
Naquele bairro dos Campos Elíseos em que eu morava — passei a minha infância e até os 25 anos mais ou menos eu morei por lá, mas é o período em que muitas vezes a pessoa recebe as impressões mais vivas de sua vida —, a Igreja do Coração de Jesus, onde eu ia tanto e que o senhor conhece, ficava naquele larguinho do Coração de Jesus, que agora está sendo desfigurado porque está sendo usado para por automóveis, puseram grades, fizeram horrores com aquilo.
Em volta daquele larguinho morava uma pequena burguesia de — eu presumo — imigrantes de várias procedências da Europa, bem a la estilo paulista, que não tinham feito grande fortuna. Tinham feito pequenas carreiras, tendo uma farmacinha lá, tendo uma lojinha com modas, a outra costura em casa, era uma chapeleira que costurava em casa para senhoras, eram pequenas coisas assim.
Viviam uma vidinha muito aconchegadinha ali dentro, muito suficiente, em torno do largo completamente dominado pela igreja, em que o carrilhão do Coração de Jesus tocava por inteiro aquela música “Louvando a Maria, o povo fiel à voz repetia de São Gabriel: ave, ave Maria!”. O carrilhão do Coração de Jesus canta tudo aquilo, aperta-se um botão elétrico e ele solta aquilo tudo. Várias vezes enchia a redondeza com aquilo, com sino forte e não encontrava obstáculos em prédios de apartamentos de cimento.
As casinhas de um andar, de dois andares, etc., muitas de luxo, mais numerosas ainda médias, algumas até pequenas, operárias, convivendo nesse bom entendimento dos graus diversos, que é uma coisa que eu conheci viva e que me deixa tanta saudade. Mas esse larguinho era o reino da classe média.
(…)
E mais adiante, do lado esquerdo de quem sai, uma casa pequena de tijolo aparente, mas tijolo cozinhado de modo especial e com colorido especial, etc. A coisa mais singular que eu já vi em minha vida.
Eu já falei aqui dos dois anõezinhos?
(Todos: Não, não.)
Muito resumidamente, eram dois irmãos, baixinhos, anões e corcundas. Ambos usavam palheta e faziam uns cumprimentos na rua para as pessoas com a palheta, os conhecidos deles da zona. Muito piedosos, rezavam Horas no Coração de Jesus, e que a gente percebia que eram riquinhos e que moravam os dois sós naquela casinha bonitinha.
Era inteiramente diferente do ambiente de minha casa.
Minha casa ficava umas quatro quadras do Coração de Jesus e já num ambiente que passava pelo palácio dos Campos Elíseos, que era o palácio do governo. E depois tinha naquele tempo toda a sorte de casa de gente muito rica, muito fina pelo caminho. Pelo meio estava minha casa também e a minha casa estava nesse circuito. Então era coisa completamente diferente. Era a vida da alta sociedade com seus lances, com seus arrojos, com seus problemas, com seus dramas, com seus sucessos, com sua batalha, etc., que contrastava com aquele sossego do ambiente do Coração de Jesus.
Eu que sou muito plácido, muito tranqüilo, ficava às vezes tentado com o seguinte:
Eu saio daqui da igreja com esse sossego, com essa seriedade, passo por esse larguinho em cuja mediocridade eu viveria deliciosamente, e vou para minha casa onde é um mar alto de toda espécie de coisa, como se vivia naquele tempo, em que os acontecimentos sociais tinham uma importância: tal não foi convidado para tal festa (isto desclassificava de tal maneira), tal outro vai casar com tal outra (o coloca de tal maneira), aquele fez tal negócio…
Tudo se movia continuamente em lances vistosos, no palco da micro Paulicéia. Era o palco que havia, um dos maiores palcos do Brasil. Então era o micro Brasil. Mas, enfim, vale tudo nessa matéria, não é?
E eu dizia: “Por que razão eu hei de continuar nesse ambiente, quando eu poderia arranjar para mim uma casa parecida com a dos corcundinhas, levar uma vida sossegada, tranqüila, lendo, rezando, à margem das batalhas e de lutas, e deixar correr os anos? Eu me acomodaria perfeitamente”.
* Algo nele lhe dizia ser feito para a borrasca e para a luta
Mas havia algo em mim que dizia o seguinte: “Você não tem o direito de fazer isso!”. Algo de quase violento, quase… não, que me dizia com veemência e não com violência: “Você não tem e nunca pense nisso. Afaste isso como você afastaria um pensamento contra a fé ou contra a pureza! Porque será o seu aviltamento e a sua vergonha. Você é feito para essas borrascas, para essa luta, para esse cenário. Não se avilte pondo-se mais baixo do que Deus lhe põe. Crie vergonha na cara, resista ao comodismo e entra nessa borrasca!”.
O senhor sabe bem — porque me conhece há muitos anos — até que ponto eu sou amigo das hierarquias. Mas nessa hora de comodismo não valia a hierarquia, valia o delicioso far nienti, a irresponsabilidade, dentro de uma vida virtuosa.
Quer dizer, eu não pensava nem um pouco em transgredir os mandamentos. Era, pelo contrário, cumpri-los comodamente à sombra da igreja, indo de manhã à missa, à noite à bênção, cantando junto com os beatos e os carolas, afinando com eles e bocejando com eles.
E eu que tinha por eles simpatia, era obrigado a dizer: eu tinha muita vontade de visitar os corcundinhas, mas via que chegava a ser uma tentação. Eu tenho certeza que os corcundinhas me receberiam com entusiasmo. Quem é que visita corcunda? Ninguém! É preciso ser eu no mundo para visitar um corcundinha, dois corcundinhas. Eu tinha vontade de ver como era a vida dos corcundinhas, mas era no fundo para imaginar como seria meu pé no chinelo… Não tinha o direito, não tinha o direito!
Se eu tivesse seguido esse caminho, o senhor sabe o que acontece? Qualquer padre me diria que isso não é pecado. O senhor, como qualquer um dos senhores aí, está certo de que o padre nem me deixaria falar até o fim:
— Tire isso da cabeça, bobagem. Você aqui leva uma vida de mais virtude, são cogitações tontas. Eu como confessor não tenho nada que ver com isso. Me diga: você transgrediu algum mandamento?
— Não senhor.
— Então acuse os pecados da vida passada e eu vou dar a absolvição, para ter matéria para absolvição!
Dava uma absolvição, mandava rezar três Ave-Marias e eu saía feliz.
Quantas e quantas vezes — eu me lembro disso — situações que me atraíam para isso. Porque antes de ser congregado mariano eu levei — é melhor que não tivesse levado — uma vida social intensa. Então íamos a festas. Graças a Deus, posso dizer: nunca pequei nessas festas, nem tive tentação. Mas era melhor não ter ido. Mas íamos. Ia então um redemoinho de gente moça, de gente rica. Eu não era rico, mas todo mundo em torno de mim era, e eu participava daquela riqueza geral, era primo daquelas riquezas todas. Todo mundo era rico e eu tinha um grande nome de família, etc. Íamos na alegria para as festas.
Quando eu passava perto de uma agência postal na Alameda Glete, quando eu via sistematicamente duas velhotinhas sexagenárias encostadas na janela, com o vidro aberto e com umas almofadas debaixo do braço, que indicava que elas tinham estado muito tempo lá e que ainda iam ficar, vendo quem passava, as duas olhando e às vezes fazendo comentário, eu dizia: “Eu gosto tanto do sossego, que eu tenho vontade de descer desse automóvel e ficar um terceiro com as velhotinhas lá. Jantar com elas em vez de fazer parte desse redemoinho que está aqui”.
Depois pensava: “Se esta gente soubesse que eu estou pensando isso, julgava que estou louco”. Porque se há uma coisa que eles tinham horror, é da vida daquelas velhotas e dos corcundinhas. Mas eu me comprazeria naquilo. Era a tentação da mediocridade.
Outra era:
Passava em frente da Igreja do Coração de Maria, porta aberta, as velhinhas entrando, e eu: “Que delícia se eu pudesse não ir para esta festa, rezar aqui e dormir cedo”.
Naturalmente comia bem antes de dormir, sempre. Comer muito sempre fez parte de todos os meus programas, nunca eu tive mediania nesse ponto.
Dizia: “Agora tenho eu que ir aqui rindo, conversando, fazendo que me divirto, divertindo-me às vezes, às vezes divertindo a eles, e lá vai essa farândola. Será que eles estão achando graça nisso? Também não sei. Vai ver que todos nós estamos loucos para nos dispersar. Mas fica feio, há uma convenção que nos proíbe de dispersar. Mas eu olho para eles, são tão vazios que me dá a impressão que eles não estão seguindo desejo de nada. Não sei também como eles são, eu não sou como eles”. Gargalhadas e brincadeiras com eles e toca a vida para a frente.
Quer me fazer uma pergunta. meu filho? É quantas queira, tomando em consideração que o Praesto Sum é amanhã cedo! Às nove horas começa, não é?
(Sr. João Clá: Uma e meia da manhã.)
Olha a fórmula Ancien Régime ideal. Elegância sevilhana.
Meu Nelson, eu vejo que você está com mais uma pergunta. Faça.
(Sr. Nelson Fragelli: Eu queria, Sr. Dr. Plinio, o mesmo exemplo com um povo. O senhor falou no “Ancien Régime”, me parece que a França no “Ancien Régime” foi colocada muito nessa circunstância de ter que dar um passo para sair daquilo que para ela de algum modo tinha tornado a mediania e fustigada pelo vendaval da Revolução, mas não sei porque um defeito não deu o passo e caiu. Não sei se me engano e se o senhor poderia esmiuçar o exemplo ou um outro mais parabólico ainda, a respeito de um povo.)
O exemplo da França é um pouco complexo demais para servir para nós. Eu acharia mais oportuno aqui no momento exemplificarmos com a história dos povos sul-americanos.
(…)
Eu penso que teremos terminado, estamos no nosso direito de dormir. Se houver uma perguntinha rápida.
* Um paradoxo: o homem destinado pela Providência para abrir a marcha rumo ao píncaro dos píncaros que é o Reino de Maria, lutou na infância contra a tentação de se mediocrizar
(Sr. Nelson Fragelli: Bom, nós esperávamos o complemento disso, quer dizer, da América do Sul. Essa foi a marcha em direção ao precipício. Ora, ela tem um chamado para o pináculo.)
(Sr. Paulo Henrique: A saída para a borrasca.)
A saída para a borrasca — veja a coisa paradoxal — é a seguinte:
No mundo inteiro esse apetite de mediocridade se faz sentir. É uma coisa que é totalmente paradoxal que um homem de quem a Providência haveria de querer que, por ser o mais velho, abrisse a marcha para sair de dentro disso para o píncaro dos píncaros oposto, que é o Reino de Maria, tivesse que lutar na sua infância contra a tentação de se mediocrizar. Lutar várias vezes.
Quem me conhece sem essa confidência, imagina que eu quando dei meu primeiro gemido, quando chorei pela primeira vez, logo depois exclamei: “Sou marquês!”. É a impressão que tem. Nunca terá a impressão de que lutei como uma fera para não sair de meu meio e mediocrizar. Nunca teriam essa impressão.
Entretanto, quando eu conto, percebe-se como isso teria fundamento no meu modo de ser.
É a minha estabilidade, meu sossego, meu gosto pelas coisas que se movem pouco. Os senhores não sabem como eu gosto do imobilismo! Bem diferente de um discípulo muito eleito que está aqui…
* Outro paradoxo: a névoa que sobe do fundo das cataratas do Iguaçu simboliza um apelo para as alturas do Reino de Maria
E é do fundo — eu estava pensando nisso, o que eu vou dizer agora — dessa catarata que parte um apelo para que formas de alturas… diretamente para o Reino de Maria. É um paradoxo.
Mas para uma edição que estamos pensando em fazer, deve ser ilustrada com uma fotografia, o dorso da capa e a página seguinte formando uma fotografia só. Nesses livros empanturrados de impressionismo moderno, usa-se isso. Livros mais para a sensação do que para a reflexão. E escolheram para pôr no livro uma coisa que a meu ver é lindíssima: uma fotografia da cataratas do Iguaçu. Mas exatamente como eu gostaria de fotografá-la: várias trombas de água ao mesmo tempo, jogando-se num precipício. E do fundo do precipício sai uma névoa de água, prateada, leve, que forma assim uma espécie de coluna de água sublimada pela catástrofe e que se levanta como névoa!
Eu fiquei com medo de que a parte gráfica não desse para quem não é brasileiro… brasileiro sabe o que é, está habituado, mas quem não é brasileiro não percebe ali o que era água o que era névoa. E mandei pôr no subtítulo que o choque da água com a pedra era tão forte, que transformava uma parte da massa líquida em névoa. E que torna mais fácil à vista, se a impressão não for superperfeita, a distinguir o que é água e o que é névoa dentro de um esbranquiçado que ficaria sem significação para isso.
Poder-se-ia dizer que essa queda final do continente sul-americano é a queda da Europa. Aliás, do continente americano. Por quê? Porque a Europa é uma rainha velha, grandiosa, de umas dessas velhices que nunca chegariam a caduquice, coroada com um diadema de todas as glórias da História. Mas ela deu o que tinha, muito mais não dá. O que ela pode dar são vilas Moscou, mais do que isso não pode dar. Aliás, não está dando.
O senhor está vindo de lá, o senhor está vindo de lá, os senhores sabem disso perfeitamente.
Agora, o fracasso da Europa é a América. Porque a América deveria ter superado a mãe. E todo bom pai entra feliz na velhice, quando vê que tem filhos que o superam. É claro.
Um homem que plantou uma árvore, ele morre contente se a árvore é mais alta do que ele, é claro! Um homem que escreveu um livro, morre feliz se o livro é mais célebre do que ele. E um homem que teve um filho, morre feliz se vê que o filho é mais do que ele. É uma coisa evidente.
Ora, a América é a filha direta da Europa. É verdade que com contribuições tupiniquins, é verdade que com sangue da África. O Oriente Próximo contribuiu generosamente para essa composição. Mas grosso modo a América é filha da Europa. E se a América teve negros, foi porque a Europa os mandou para cá. Se a América se missigenou com gente do Oriente Próximo, foi porque a Europa quis. A Europa fabricou a América.
A América do Norte é filha direta da Revolução Inglesa e Francesa. E aquela doida delirante sem beleza, que é a Estátua da Liberdade…
(…)
… naturalmente não preciso dizer aos senhores, me indignei até o furor roxo com a queda da Bastilha. Eu devo dizer que não assisti, mas lendo as notícias me indignei até o furor rubro.
Mas seja como for, a América é filha dos acertos e desacertos da Europa. Da Europa anglo-saxônica. E nós fomos filhos dos acertos e dos desacertos da Europa latina.
Ora, toda América não deu o que podia dar e se precipita numa voragem. E a América afunda nessa voragem carregando o peso de todos os seus dólares, para cair mais depressa e ainda mais fundo. Só servem para isso.
Bem, do choque dessa América com o caos acontece esse fato: que nasce o apelo da TFP. E o processo das águas que iam correndo pela catarata ou vão abaixo e que dão a trombada pavorosa final que nada pode evitar, o processo cessa com a queda de água. Mas uma névoa se desprende e outro processo começa!
Isso não está dito no livro, nem seria bem visto se fosse dito no livro, mas para mim é um símbolo possante, até admirável!
Bem meus caros, sobre esse símbolo vamos dormir!
(Todos: Fatinho!)
Não, fatinho é isso!
Vamos rezar a Oração da Restauração!
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