Conversa
de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) –
7/5/1983 – Sábado [RSN 43, 45 e AC VI 83/05.12] –
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Conversa de Sábado à Noite (Êremo de São Bento) — 7/5/1983 — Sábado [RSN 43, 45 e AC VI 83/05.12]
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Uma passeata nossa no Rio poderia ser mais fantasiosa que em São Paulo * O que precisa uma passeata de ódio para ser inteiramente da TFP? * Segundo o permissivismo de hoje, afeto e desconfiança se excluem * A verdadeira amizade deve denotar não somente confiança, mas também vigilância * Repreende o justo e ele te amará — Ama o justo e ele te repreenderá * Sobretudo nos superiores devemos sentir afeto junto com vigilância e aptidão para punir * Porque não se aceita a existência do pecado original, do demônio e da prova, a cortesia solerte de nosso leão irrita mais que o vermelho do estandarte * Entre brasileiros, deixar transparecer vigilância e desejo de reprimir elimina popularidade * A passeata da TFP deveria exprimir três características dificilmente aceitas: varonilidade, vivacidade de reflexos e grandeza * As máfias impedem fazer um tratado de nossas manifestações * Se formos como devemos ser, Nossa Senhora dará a vitória
Meus caros, uma pergunta logo, que nós temos uns quinze minutos de reunião.
(Sr. João Clá: Como é que o senhor imaginaria uma passeata da TFP, com hábitos, com todos os símbolos?)
* Uma passeata nossa no Rio poderia ser mais fantasiosa que em São Paulo
A passeata poderia ser imaginada concretamente de mil modos. É uma coisa evidente. Depende do lugar, da cidade, da índole da população.
Por exemplo, uma passeata no Rio de Janeiro deveria ter certas características que ela não poderia ter em São Paulo. Ela poderia ser muito mais fantasiosa no Rio de Janeiro do que em São Paulo. Mas em São Paulo ela deveria ter uma certa catadura, sem a qual ela não poderia ser tomada a sério. E daí para frente, cada cidade, cada lugar, etc. É quase infindável.
* O que precisa uma passeata de ódio para ser inteiramente da TFP?
Mas há um aspecto da coisa, como me passou pela cabeça na capela, enquanto eu rezava… Passou enquanto pensamento que eu afastei porque atrapalhava a oração, não era um fruto de uma oração. Eu afastei porque atrapalhava a oração. Mas eu dou vazas ao pensamento aqui, faço a análise do pensamento aqui.
O mais importante para o mundo todo de hoje — mais importante sobretudo para o Brasil, por causa de algumas características da psicologia brasileira — seria o seguinte: uma passeata onde, no equilíbrio, na manifestação de carga, se nós não levamos ódio, o que é que nós levamos?
Imaginem os senhores que nós tivéssemos que fazer uma passeata de ódio. Uma passeata de repúdio a uma coisa, de rejeição a uma coisa, é uma passeata de ódio. O que é que seria preciso ter essa passeata para ser inteiramente uma passeata da TFP?
* Segundo o permissivismo de hoje, afeto e desconfiança se excluem
Eu estava pensando nisso. É uma coisa difícil de pôr nas cabeças das pessoas hoje, e é um fundo de permissivismo que há, mas que entrou na cabeça de tantas pessoas como eu não sei quantas são. É o seguinte: esse afeto mútuo não é possível sem a confiança mútua, e a confiança mútua e o afeto mútuo são de si mesmos sentimentos e disposições de alma que tendem a fazer baixar as barreiras. De maneira que as pessoas que participam do mesmo afeto, da mesma amizade, devem tanto quanto possível pôr tudo quanto têm em comum. E não devem ter uma com a outra nenhuma atitude que de nenhum modo lembre a possibilidade de uma desconfiança recíproca, lembre a possibilidade de um passar um breque, em freio no outro. Mas deve ser a despreocupação afetuosa e completa.
De tal maneira que se num trato cordial aparece qualquer gota pequena de desconfiança, se num trato cordial aparece qualquer reserva, por onde a outra pessoa entenda que conforme as circunstancias ela será objeto de uma represália — sobretudo para a nossa mentalidade de brasileiros, não sei se os nossos portugueses são assim ou não, um tanto parecidos hão de ser — e isso tisna as relações, prejudica e pode levar a uma retração recíproca e irremediável.
* A verdadeira amizade deve denotar não somente confiança, mas também vigilância
Ora, a verdadeira amizade e a verdadeira confiança não são assim. E elas devem realmente denotar esta afabilidade, esta confiança, isto que eu acabo de dizer devem denotar. Mas não devem denotar só isso. E um homem reto não é amigo verdadeiro de quem denote só isso. É preciso sobretudo tomar em consideração esse ponto:
Como todos somos concebidos no pecado original e todos estamos em estado de prova, todos somos pecáveis. E todo homem que trata com outro homem deve tratar com ele de uma maneira tal, que o outro sinta que ele tem de fato, no outro, toda confiança que o outro merece. Mas essa confiança não é ilimitada, porque o homem reto desconfia de si mesmo e vive vigiando-se a si próprio. E se ele vigiar a si próprio, ele tem que vigiar o outro, porque na sua própria miséria ele vê a miséria do outro, não tem por onde escapar. E os santos que mais extraordinários foram, nas maiores virtudes, eram exatamente nessas virtudes, mais especialmente vigilantes de si e dos outros.
* Repreende o justo e ele te amará — Ama o justo e ele te repreenderá
(Sr. João Clá: Isto não está sendo aceito com muito calor…)
É, eu bem sabia que ia mexer em ponto sensível! Eu bem sabia. Mas como alguns são especialistas em ser escafandros, outros são especializados em mexer em pontos sensíveis… E é uma psy escafandragem que eu sei que estou fazendo, a essa hora que confesso ser inadequada…
Mas acontece o seguinte:
A Escritura diz “repreende o justo e ele te amará”. E no amigo meu em que eu note uma vigilância, pelo menos em potencial e uma repreensão pelo menos potencial, eu ali o amo. Porque se eu sou um homem reto, eu devo esperar do meu amigo que ele me repreenda caso me aconteça a desgraça de não ser reto. E eu devo amar nele, a disposição de alma por onde ele é assim.
(Sr. João Clá: Para nós a coisa é diferente: “Ama o justo e ele te repreenderá”.)
Ahahah! Mas é muito verdadeiro, porque o justo muitas vezes não repreende porque o repreendido não tem amor. Se ele tivesse, ele teria repreensão a fazer…
* Sobretudo nos superiores devemos sentir afeto junto com vigilância e aptidão para punir
E por causa disso, o convívio humano, necessariamente, por mais afetuoso, etc., não pode ser um convívio despreocupado, não pode ser um convívio sem fronteiras, e não pode ser um convívio desarmado.
No sentido psicológico da palavra. É claro que eu não falo da arma física, seria maluquice. Eu digo nesse sentido psicológico da palavra, não pode ser um convívio desarmado.
A gente deve sentir, sobretudo nos superiores, aquela permanência da vigilância, e por detrás daquela vigilância, aquela aptidão a punir. E se ela não se mostra junto com o afeto noite e dia, o afeto dá em paz de Yalta. Eu acho… eu acho não, isto é assim. Independente de eu achar ou não, isto é assim.
* Porque não se aceita a existência do pecado original, do demônio e da prova, a cortesia solerte de nosso leão irrita mais que o vermelho do estandarte
E o que mais arranha no nosso estandarte, os senhores não pensem que é o vermelho, é que o nosso leão tem esse ar.
O Guerreiro e o coronel muito adequadamente olharam para o leão que está aqui enormemente representado no estandarte. Prestem atenção, o jeito dele é: “Dou-lhe um trato com toda honra e toda cortesia, mas eu estou alerta!”.
Não é isso que esse leão diz?
E é isto propriamente que arranha as pessoas. É porque as pessoas não querem aceitar isso que é uma conseqüência necessária de três pontos: o pecado original, a existência do demônio e o estado de prova em que está o homem.
Pois se Adão, sem pecado original, estava no Paraíso, sofreu uma tentação e fez o que fez… como é que nós haveremos de imaginar de nós mesmos e do outro que é nosso amigo que ele não fará aquilo? Ele é homem e começa a decair. E a qualquer hora ele está olhando com afeto para o fruto proibido. A qualquer hora.
Mas se é assim, como é que posso eu não ter uma potencial reserva em relação a ele? Carregada de afeto, é bem verdade, mas uma potencial reserva!
O que não for isso, não é sério! E não é amizade. Porque se o repreender é um dos ofícios do amigo, aquele amigo meu por moleza ou porque qualquer outra coisa não está disposto a fazer-me este ofício.
Eu dele devo achar pelo menos o seguinte:
Imaginem que eu tivesse um amigo, grande cirurgião, e que eu achasse que de vez em quando preciso de uma cirurgia, e esse meu amigo, de pena de mim, não quer me fazer a cirurgia. Mas isso não é pena, tenha a paciência!
— Ah, mas eu gosto tanto de você que não quero operar.
— Mas estou precisando que me opere, você não quer me operar?
Mais ainda:
— Eu preciso que você me repreenda, você não quer me repreender?
É assim. O que não for isso não é sério. Absolutamente não é sério.
* Entre brasileiros, deixar transparecer vigilância e desejo de reprimir elimina popularidade
E é inegável que todas as formas de trato entre nós — do Brasil, quero dizer — que deixem transparecer um pouco disso, eliminam a popularidade e criam um isolamento. E, mais ainda, os que são brasileiros apenas a meio sangue, ou a terço de sangue, ou mais ainda, que estão habituados a morar no Brasil há muito tempo, se não prestam atenção, entram nessa história. Porque o amor próprio se habitua enormemente a tudo o que o afaga. Absolutamente. Tudo que faz assim ao amor próprio, o amor próprio se habitua. E podem pôr aqui o alemão prussiano mais militarista que haja, se puser aqui, ao cabo de algum tempo isso lhe entra no subconsciente. Ou pelo menos pode facilmente entrar.
* A passeata da TFP deveria exprimir três características dificilmente aceitas: varonilidade, vivacidade de reflexos e grandeza
Portanto, voltando à passeata, a passeata da TFP deveria exprimir…
(Sr. –: Tem algum aquecedor ligado aqui ou não?)
Bom, mas também nós não demoramos. Amanhã todos os enjolras, eremitas, precisam levantar cedo, hein?
(Sr. João Clá: É o dia em que eles se levantam mais tarde.)
É, pois é. Mas deitam muito antes dessa hora agora.
Bem, mas vamos para frente.
Seria uma passeata que teria, portanto, essa característica difícil de fazer engolir: é uma atitude varonil, capaz de todas as energias, como de todas as desconfianças, e ao mesmo tempo de todos os afetos, todos os perdões e todas as condescendências.
Como explicar isso? Eu vou lhes dizer daqui a pouco porquê.
Depois seria preciso que nela houvesse uma outra coisa.
Nosso povo lucraria em ser mais metafísico, em gostar em que se remontasse às mais altas considerações para justificar qualquer coisinha concreta. Como nós temos um mecanismo de reflexo muito vivo, pelos reflexos rapidamente a gente de uma coisa concreta deduz outra. E forma uma espécie de pseudo-inutilidade subir às mais altas considerações para depois descer. Parece um lastro inútil, uma vez que o reflexo indica aquilo rapidamente.
Ora, isso cria uma superficialidade de espírito. E cria um nó diante de toda pessoa ou movimento que simboliza altas razões para justificar suas atitudes. Era preciso que a passeata da TFP exprimisse isso.
Vamos dizer, na mais comum das coisas, na mais rasteira das coisas: o jogo de futebol. Os maiores torcedores de jogo de futebol — eu digo torcedor comum de rua, não digo o técnico que ganha a vida com isso — para acompanhar a partida e entender como a partida deve ser e torcer, têm reflexos prontíssimos. Mas não estão dispostos a ler um tratado a respeito da técnica do jogo de futebol, porque é subir ao abstrato e a princípios. Isso lhes tira o ar, não gostam. É um defeito.
Seria preciso que essa metafísica impregnasse as coisas da TFP. Seria preciso de outro lado que as coisas fossem muito grandiosas, muito belas, e elas os são, mas não desse impressão de intencionalmente enfeitado. Porque o intencionalmente enfeitado dá vontade de demolir. Não é uma qualidade, mas é assim.
Se os senhores pusessem, por exemplo, numa rua — e fosse ao alcance de todo mundo — um manequim de marechal de antes da Primeira Guerra Mundial, com aquele bicórnio e com condecorações, etc., quando chegasse de manhã o manequim estava espandongado. Não é porque tenham roubado algo, talvez roubassem. “Ah! está muito enfeitado, vamos destruir”. É um defeito e é assim.
A TFP não pode fazer isso. Ela tem que se enfeitar de coisas que não dêem vontade de destruir.
São alguns dos traços de nossa manifestação.
* As máfias impedem fazer um tratado de nossas manifestações
Agora, a questão é que nossa manifestação… e eu dei assim, porque os senhores compreendem, eu não posso fazer um tratado de manifestações. Eu tenho que dar partes da coisa, como quem dá não uma árvore, mas achas de lenha. Assim eu também da matéria tenho que dar achas de lenha, não posso dar a matéria inteira.
Daria não sei quanto tempo de tratado, não… E depois, eu estava explicando ao João, iam mafiar que eu estou preparando os senhores para desordem na rua, não iam? Direto.
Eu não posso fazer isso.
Já essas reuniões que eu estou fazendo são muito perigosas. Vão dizer que eu estudei essas coisas. Não é verdade, eu não tive tempo de ler uma linha sobre isso, mas iam dizer que eu estudei essas coisas e que estudei com os planos subversivos mais sinistros. Iam dizer isso.
Imaginem se soubessem que eu fiz, por exemplo, um mês de reuniões para os senhores sobre isso. De maneira que não pode. Os senhores têm que se contentar com as achas de lenha em homenagem a elas.
* Se formos como devemos ser, Nossa Senhora dará a vitória
(Sr. João Clá: Se eles pegarem isso, eles vão obrigar todo mundo a estudar.)
Ah é capaz! Mas a mera razão natural é muito pouca coisa onde existe o sobrenatural. O problema é nós fazermos isso de qualquer jeito. E a graça que fale às almas como quiser, porque ela a nós nos fala que nos mostremos assim! Se ela quer isso de nós, isso faremos. A Providencia dará depois aos acontecimentos o curso que ela entender, nós fazemos assim.
O problema para nós é muito mais simples. É um problema de coerência, de sinceridade, da política da verdade que eu tenho tanto falado. Sou assim, vou me mostrar assim. Vamos ver no que é que dá.
Nossa Senhora fará vencer, está acabado. Não tem conversa.
O grande problema é nós sabermos, primeiro, ser inteiramente como que eu acabo de dizer. Quer dizer, tornar muito mais viva em nós a noção do pecado original, dos efeitos devastadores que a qualquer momento ele pode produzir, da precariedade de cada um de nós, de que nossa obra é um milagre permanente e que a qualquer hora desaba.
Isto é um milagre permanente. A TFP está completamente fora da economia comum das graças, e se não fosse o sobrenatural, nesta noite começava as deserções e amanhã estava esse prédio vazio.
Mas esse pendor mau da natureza contra o qual a graça nos dá tantas forças, esse pendor é apoiado pelo demônio. Existe o preternatural, existe a luta. É preciso estar lutando continuamente, continuamente. Isso em nós. É preciso estar lutando e é preciso que o outro tenha em nós o apoio de sentir que nós carregamos a cruz de nossa própria luta. Porque nós ajudamos a ele com isso, a carregar a cruz da luta interior dele. E cada um de nós é potencialmente um contendor, um censor do outro, caso o outro ande mal. Um censor pelas mais altas razões e não por qualquer razãozinha: um censor por razões teológicas e metafísicas. Pelo menos intuídas, mas é assim.
Ao lado disso, todos os graus e formas de afeto, de respeito, de cordialidade, de abnegação, e tudo o que se possa imaginar. Mas assim.
Esse é o aspecto do tipo humano que nós devemos mostrar. E eu saliento este aspecto porque estamos no Brasil, e a este problema o povo brasileiro é muito sensível: “Como é que eu vou ser tratado?”. Tem brasileiros aqui e sabem disso perfeitamente. Sensíveis ao sumum, a esse ponto.
Então aqui está!
Meus caros, duas e quarenta e cinco. Já é mais do que tempo de nós despedirmos.
Há uma coisa que é lamentável e contra essa eu não posso nada. É que quanto mais se prolonga a reunião do Auditório São Miguel, tanto mais se encurta aqui.
(Sr. João Clá: Suspender sábado que vem o Santo do Dia e aumentar essa.)
Não. É uma roldana. Para que a reunião do Auditório São Miguel termine mais cedo, é preciso eu chegar mais cedo. Para eu chegar mais cedo, é preciso que a Reunião de Recortes termine mais cedo, é preciso que eu chegue mais cedo a Jasna Gora. E lá vai toda roldana daí para trás.
Eu não posso fazer nada contra isso. É o momento de nós rezarmos e nos recolhermos.
Conversamos caudalosamente.
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