Conferência (Auditório da federação do Comércio, São Paulo) – 1/7/1966 – 6ª-feira – p. 20 de 20

Conferência (Auditório da federação do Comércio, São Paulo) — 1/7/1966 — 6ª-feira

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A tradição e a continuidade familiar

(Ministro Pedro Chaves: ...a insigne honra de declarar aberta esta sessão. Devia fazê-lo de pé e a alma de joelhos, em homenagem à vibração cívica de São Paulo ante a ameaça que paira sobre a família brasileira, numa hora conturbada em que a subversão pretende atacar os alicerces da sociedade. Mas vamos antes ouvir a palavra do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, um nome que é um relicário das mais altas virtudes cívicas, morais e intelectual do nosso tempo. Um homem a quem a pátria já tanto deve e que ainda mais vai dever, porque Sua Excelência empresta o valor da sua cultura e o fulgor da sua inteligência pelas melhores causas, pelos mais belos ideais de São Paulo e do Brasil. Com a palavra Sua Excelência.)

[Aplausos]

Exmo. Sr. Ministro Pedro Chaves, dignos componentes desta mesa, Revmos. Srs. Sacerdotes, minhas senhores e meus senhores, não sei verdadeiramente como começar. Porque, depois das palavras tão generosas com que houve por bem referir-se à minha pessoa, o Sr. Ministro Pedro Chaves, eu deveria um agradecimento, que não tem proporção com os vocábulos que eu possa encontrar para esse fim.

Com efeito, é bem verdade que dos elogios que um homem possa receber na sua atuação pública, o de um magistrado é o mais imparcial, é o mais carregado de densidade e de valor moral. Mas quando esse magistrado se encontra no ápice das honras e dos encargos da magistratura, sobe muito de ponto a honra que com isto ele faz referindo-se elogiosamente a alguém. Mas quando esse magistrado é o Sr. Ministro Pedro Chaves, em quem São Paulo admira um padrão lídimo, autêntico e altamente expressivo de cultura, de valor moral e de integridade, então realmente não se tem o que dizer a não ser o desbotado, mas desta vez tão comovido, “muito obrigado”.

Minhas senhoras e meus senhores, eu devo tratar na noite de hoje do problema do divórcio, considerado debaixo de um ponto de vista ligeiramente diverso daquele com que habitualmente é tratado.

Há na controvérsia divorcista como ela comumente existe, há nessa controvérsia um modo de tratar a questão que está mais ou menos... que se tornou mais ou menos clássico, que se tornou mais ou menos definitivo, e que, em última análise, consiste no seguinte. Divorcistas e antidivorcistas analisam a instituição da família para perguntar qual é a sua verdadeira finalidade, no que consiste dentro dela a obtenção da felicidade da parte dos cônjuges e dos filhos.

Depois de se perguntarem isto, então, levantam a questão: O divórcio é um meio de conseguir a obtenção dessa finalidade, ou, pelo contrário, ele é um meio que afasta dessa finalidade? Ele é um meio que conduz à felicidade dos cônjuges e dos filhos, ou é, pelo contrário, um meio que arruína, que destrói a felicidade verdadeira dos cônjuges e dos filhos? E em torno deste assunto a controvérsia divorcista se desenvolve indefinidamente.

Vista assim a questão, ela se cinge a considerar então a família no seu elemento primário, no seu aspecto célula, constituída apenas de pai, mãe e filhos. E a influência dos pais sobre os filhos, a coesão dos irmãos, é habitualmente considerada de um ponto de vista que nós chamaríamos de preponderantemente pedagógico ou didático. Em outros termos, qual o valor dos ensinamentos pré-ministrados pelos pais aos filhos? Qual o valor do divórcio, ou da indissolubilidade para assegurarem a eficácia desses ensinamentos? Qual é o modo pelo qual a alma do esposo e da esposa se unem dentro da vida de família? Com a indissolubilidade, isso se consegue ou não consegue?

E então o problema fica reduzido a uma questão de formação, de comunicação de princípios, de acerto de inteligência, de definição de vontade. Mas tudo habitualmente considerado de modo tal que (eu ousaria dizer, de um modo um bocadinho cartesiano) não se toma em consideração que a família não é uma instituição convencional, que ela não resulta apenas da livre conjugação de algumas pessoas, mas que ela é uma instituição de caráter natural e que ela carrega consigo uma porção de outras influências, uma porção de outras riquezas, que lhe vêm exatamente de sua condição natural. E que essas influências e essas riquezas, se bem que na vida de família não ocupem um lugar preponderante, porque na realidade da família, o ensino dos bons princípios, a formação da boa moral, o ato livre de vontade pelo qual o indivíduo cumpre o seu dever, em circunstâncias até espinhosas, é sempre o elemento fundamental, entretanto é indispensável para que esta vida intelectual e moral da família se desenvolva inteiramente com a suavidade, com a harmonia, com a força natural que lhe é própria, é indispensável tomar em consideração um outro fator, e esse fator ou esse duplo fator, vem a ser exatamente a hereditariedade, de um lado e de outro lado, a tradição.

A tradição e a hereditariedade, como nós veremos, comunicam à vida de família um calor vital, fazem dela um fato natural, com uma porção de desdobramentos de ordem psicológica, de ordem afetiva, que facilitam enormemente a realização das finalidades da família. E em conseqüência disto a vida de família se encontra impregnada de capacidades, de forças germinativas que, como nós veremos daqui a pouco, constituem a própria alma do Estado, a própria alma da sociedade. E se não se tomar isso em consideração nem se conhece bem o benefício que a família presta ao indivíduo, nem o benefício que ela aufere ela mesma desses fatores, nem o serviço verdadeiro que ela presta ao Estado.

Ora, do ponto de vista do divórcio, é capital nós conhecemos nesta amplitude a vida da família. Pois sim, nesta amplitude se pode sustentar, como nós veremos, e se deve sustentar que a família é a célula que comunica à sociedade sua vida e não apenas uma pequena pedra, ou um pequeno conjunto de pedras, sobre os quais se estrutura o edifício social, quer dizer, se a família é algo de vivo e não apenas algo de inerte, então se deve reconhecer que a vida social dependendo da boa vitalidade da família é uma questão de salvação pública que pende da resposta à seguinte pergunta: Se realmente a vida social e a vida familiar são compatíveis ou não com o divórcio.

Como não lhes será difícil ver essa temática afasta, amplia o quadro do debate divorcista. Afasta-o em parte de seu quadro habitual para abrir para ele todo um outro horizonte, e neste horizonte me parece que se depreende, se apura, se verifica com uma facilidade enorme que o divórcio é destrutivo da própria vida social.

Assim, portanto, a tese desta noite é: que há um tipo de sociedade que é o único tipo de sociedade verdadeiramente viva, um tipo de sociedade que vive da vida da família.

E em segundo lugar, que essa vida da família que comunica a sua vitalidade a essa sociedade, que essa vida da família não pode ser mantida nem desenvolvida com a instituição do divórcio.

Assim introduzido o assunto, como é fácil perceber, eu me vejo obrigado a sair desde logo do tema imediato do divórcio, para explicar um pouco melhor o que é que vem a ser esta vida da família, esta projeção da vitalidade familiar dentro da sociedade, em uma palavra, o que vem a ser uma sociedade orgânica e viva, por contraposição a uma sociedade anorgânica e morta.

Não farei muitas citações. Não as farei porque a matéria já é de si muito vasta, e eu não a quero alongar ainda com citações. Não as farei também porque citações se acumulariam enormemente ao longo do tema, pois que os escritores que daqui a pouco citarei, uns por alguns aspectos e outros por outro, tratam do assunto de maneira que eu me referirei apenas aos escritores em que remotamente eu me inspirei, com acréscimo de reflexões próprias.

Os escritores em que eu me inspirei são todos eles, ou principalmente são eles da escola tradicionalista do século passado. São: Joseph de Maistre, de Bonald, Blanc de Saint-Bonnet, sobretudo o grande Le Play, do qual eu divirjo em alguns assuntos fundamentais, mas que versou com inexcedível competência os assuntos atinentes à família; Donoso Cortês, já citado com tanto acerto e com tanto brilho nesta série de conferências pelo Ministro Ítalo Galli; Vasquez de Melia, Balmes e Nocedal os grandes tradicionalistas espanhóis; o conde Solaro de Santa Marguerita, italiano, e João de Almeal e algo de Eça de Queirós no que diz respeito a Portugal.

Há documentos pontifícios que também trataram da matéria com muito acerto e muito brilho.

Antes de tudo Pio XII, no seu famoso trecho a respeito de povo e de massa, que oportunamente citaremos; depois também Pio XII em alguns dos seus conhecidos discursos à Nobreza e ao Patriciado romano; e em João XXIII ou ao princípio da subdisiaridade que ele enunciou com uma precisão e com uma força maior do que todos os seus antecessores na Encíclica “Mater et Magistra”. Este é o material que serviu para a construção das reflexões que eu passo a expor no momento.

Para nós termos uma idéia não apenas teórica, mas uma idéia viva do que seja uma sociedade orgânica, seria talvez interessante nós remontarmos a alguns séculos atrás.

Quando o Império Romano vivia ainda no esplendor de sua glória e na pujança de suas instituições administrativas e judiciárias, jurídicas, era ele sulcado por estradas admiravelmente bem traçadas, muitas das quais ao menos em parte, ainda subsistem em nossos dias. Essas estradas ligavam entre si as cidades que se disseminavam pelo Império e eram relativamente percorridas, quer pelas tropas que deviam assegurar a defesa das fronteiras e a submissão das províncias, quer também por um grande número de viajantes maior do que hoje se pensa, que ora a pé, ora a cavalo, ora no veículo de super luxo do tempo, que era os grandes comboios de carro de boi, que organizavam expedições com oito, dez carros de boi, que levavam até neve para fazer sorvete para os viajantes de luxo, percorriam então em todas as direções o império.

Mas quando os bárbaros invadiram o Império, e com a influência bárbara, a incultura se apoderou de toda a Europa, o estado romano ruiu, as estradas começaram a ser pouco freqüentadas. Elas se romperam porque as pontes que as continuavam em muitos lugares, por falta de conservação acabaram ruindo também. E com isso em muitos lugares o mato invadiu as estradas, os centros urbanos diminuíram extraordinariamente de densidade e as pequenas cidades passaram a viver uma vida isolada, uma vida profundamente isolada e uma economia isolada.

Esta vida e esta economia transformou, por assim dizer, cada cidade numa ilhota, e cada ilhota dessas como uma espécie de unidade econômica auto-suficiente, em que os habitantes eram obrigados a tirar todos os meios, todos os recursos do próprio solo para viver, numa economia de subsistência direta, sem comércio, e em que por causa disto, também a vida de alma da pequena comunidade foi tomando uma configuração típica e inconfundível. Em cada lugar, começam a aparecer uma arquitetura própria, uma indumentária própria, trajes regionais próprios, os dialetos vão se formando; por outro lado os costumes vão se diferenciando; e quando nós chegamos aos primórdios do século XI pelo século XII nós encontramos então a Europa toda ela transformada num mosaico de pequenos mundos avulsos, cada um estuante de vitalidade própria. Desta vitalidade nós podemos bem ter uma idéia se nós nos reportamos ao que dela ainda existe hoje.

Todo o turista que vai à Europa se encanta em conhecer os trajes regionais, as arquiteturas regionais, as danças regionais, que são remotos e resistentes resquícios, exatamente desta proliferação de variedade na Idade Média, remotos resquícios que nos dão a idéia de como em cada lugar, em cada ponto, foi se formando como que uma cultura própria, e uma civilização própria, que já era muito diferente da que existia há poucas léguas mais além.

Esta proliferação, esta vida estuante como se vê bem, vinha de baixo para cima. Eram os indivíduos, eram as famílias, que em coletividade muito pequenas, onde o poder público se afirmava pouco, naturalmente comunicavam a sua força vital e a sua influência ao ambiente. E era portanto uma ordem de coisas em que o indivíduo, a família, o costume, imperavam muito mais do que a autoridade jurídica propriamente constituída.

Esta situação começou a mudar a partir do século XII mais ou menos ou século XIII quando as guerras entre os feudos decai, quando a Europa começa a conhecer uma relativa paz, quando a ação dos cavaleiros andantes no extermínio dos bandidos desinfesta, acaba de desinfestar as estradas, em que o comércio então começa a circular.

Ao mesmo tempo em que o comércio circula, as barreiras desses pequenos mundos se modificam, e ao mesmo tempo que essas barreiras se modificam, vai começando a formar-se de aqui, lá e acolá, vão começando a se formar grandes cidades, vai surgindo nos vários reinos uma capital; o rei, a figura do rei se destaca, ele constitui uma corte; tudo caminha para a centralização e essa centralização vai do século XIII numa marcha ascensional até o século XVII e começo do século XVIII com Luís XIV na França, e com reis que tiveram um pouco o tipo de Luís XIV antes ou depois dele, como foi, por exemplo, o rei Felipe II da Espanha, ou como foi Pedro o Grande, na Rússia, ou como foi Catarina a Grande, na Rússia, etc.

O que sucede então é que esta concentração vira completamente o jogo das influências. E nós nos sentimos melhor do que em qualquer lugar, considerando a corte de Luís XIV. É uma corte paradigmática: o rei é o “Rei Sol”; ele se considera o rei como se deve ser rei; é o modelo perfeito e acabado do rei. Uma nobreza ao lado dele que se considera e é tida por toda a Europa como modelo perfeito e acabado da aristocracia de salão. Um conjunto de estadistas que a Europa reputa modelos perfeitos e acabados de estadistas do tempo; um conjunto de grandes damas que são o protótipo da elegância, da graça, e da beleza feminina no século; até a Cátedra Sagrada, entra dentro deste movimento e aparece o grande Bossuet, um pouco depois o grande Massillon, que são tidos como o modelo perfeito do orador sacro na Europa.

E assim, nós temos então, que se forma um centro, que é o centro modelar no qual se espelha toda a França, no qual não se espelha apenas toda a França, mas se espelha também toda a Europa — em proporção maior ou menor, e há então o fenômeno do afrancesamento da Europa — espelha-se toda a Europa, e que nos apresenta um quadro diametralmente oposto. Por toda parte vão ruindo as influências locais; por toda parte os fatores característicos vão desaparecendo e aparece um centro que está dotado dos melhores técnicos, ou dos melhores especialistas em tudo, desde a arte de conversar até a arte de dirigir finanças, ou de dirigir exércitos, ou de ocupar a tribuna sagrada. E este centro, imitado por todos, transforma a situação.

A vida, a propulsão social não vem mais da base para cima, mas vem do alto para baixo; não vem mais do corpo social impelindo a cabeça da sociedade, mas vem, pelo contrário, da cabeça da sociedade modelando a vontade, um corpo social que se torna inerte e que se deixa dirigir por ela completamente. E esta orientação centralizadora, ao contrário do que parece, não cessa com a Revolução Francesa.

O Comité de Salut Publique teve uma influência centralizadora e uma soma de poderes muito maior do que de Luís XIV; mas Napoleão teve uma soma de poderes maior do que a do Comité de Salut Publique; e em geral os historiadores e os juristas franceses estão de acordo em afirmar que um Chefe de Estado francês de nossos dias tem, no fundo — é verdade que circunscrito pela lei, mas enfim dentro do âmbito da lei —, ele tem uma influência, uma capacidade de dirigir o corpo social muito maior do que Luís XIV no total da sua glória.

Mudou o jogo de influências: passou-se da monarquia mais ou menos aristocrática para a democracia, e nessa democracia, evidentemente, o rei passou a ser o povo. E então, no mesmo centro dirigente se passam as coisas de um modo um pouco diverso. Há uma verdadeira doxocracia como dizia, Marcel de [Gauchet?]. Quer dizer, há um conjunto de técnicos, há um conjunto de especialistas que discutem entre si, que disputam entre si a respeito da solução a ser dada aos problemas. Eles são apoiados por máquinas de propaganda, por sistemas de propaganda; eles têm a seu serviço, a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema, enfim todos os meios comuns de propaganda e com isso influenciam o eleitorado. O eleitorado rei, decide a favor de uns ou a favor de outros; mas a impulsão principal continua a vir da Capital, de técnicos que afluíram para a Capital, que se dissociaram dos respectivos centros de vida, que vivem da vida artificial da Capital, que através da Capital comandam a propaganda e obtêm, através das eleições, um mando necessário para realizar aquilo que desejam.

De maneira que, em última análise, continua ser que a Capital, com os seus valores típicos continua a dirigir de fora para dentro a sociedade e que os elementos regionais, os elementos locais, vão cada vez mais perdendo a sua influência, perdendo a sua capacidade de movimentação.

O resultado desta situação, o resultado deste jogo é a depauperação do homem contemporâneo. Cada um de nós tem a sensação de viver como um grão de areia isolado dentro da multidão. Nós, de tal maneira nos habituamos aos meios de propaganda, de tal maneira nós nos habituamos a um estímulo de fora do nosso espírito e de nossa mente, que nos dê o material para pensarmos, para refletirmos, etc., que já se tem visto esta coisa que representa para mim a última palavra do assombro na matéria: são jogadores — digo mal —, torcedores de futebol que em estádio de futebol, assistem a partida com o rádio no ouvido; porque, sem o auxílio de alguém que lhes diga o que esta acontecendo, e que eles também estão vendo, eles não conseguem tomar uma atitude individual e própria em face do fato que eles estão presenciando.

Eu vi há pouco tempo atrás, numa revista francesa, um fato característico. Tratava-se… — uma charge característica —, era uma revista publicada em vésperas de Natal. Então há uma televisão, diante da qual estão sentados dois meninos; sentadinhos um ao lado do outro, muito direitos, e olhando entusiasmados uma cena que representa o Papai Noel, que, numa casa hipotética representada pela televisão, entra pela lareira. Nisso eles ouvem um barulho, e eles vêem um Papai Noel de verdade que está entrado pela lareira da casa deles. Suponhamos que seja o pai, que quer levar presentes ou qualquer coisa. A charge não especifica isso.

Então as crianças fazem ao Papai Noel verdadeiro um sinal indignado: “Pare e não se mexa”, para ver o que esta acontecendo no écran.

[Risos]

A charge, a charge diz algo quanto a essa gradual renúncia nossa a um movimento que venha de dentro para fora de nós, a um movimento que exprima algo que sai de nós e que se projeta para fora. E para exprimir a nossa inércia, para exprimir a nossa passividade diante de estímulos imensos organizados extrinsecamente a nós e que vão nos conduzindo a todos nós para rumos que nós verdadeiramente não percebemos, e que nos estarreceriam se nós pudéssemos perceber.

Ainda hoje eu folheei a revista “Paris Match”, um número recente da revista “Paris Match”, e encontro uma fotografia de página inteira de uma — não sei como dizer — uma play girl (eu não sei se o termo é muito correto, eu me confesso pouco informado desse gênero de assunto) mas, enfim digamos uma play girl, vestida pela mãe em trajes ultramasculinos, e ela mesma numa atitude masculina, brandindo uma espécie de tacape. A mãe tinha sido ela mesma, uma vedete quando era moça; e então a revista publica junto uma fotografia da mãe quando era moça. A mãe, quando moça, ultrafeminina, correspondendo ao último estágio do tempo em que a mulher quanto mais feminina, tanto mais disso se jactava, e tanto mais era apreciada pelo homem, e está recebendo carícias de um homem ultramásculo, que presumivelmente é o pai da menina que está lá.

E eu pensei comigo: se esta senhora,1 quando ela era moça e que ela jactava em ser tão feminil, previsse que a filha dela houvesse de ser esse grande molecão de sexo feminino que estava aqui…

[Risos]

ela desmaiaria, ela recusaria a idéia.

Mas como é que ela foi levada à aceitação desse fato por tal forma que, em última análise, ela nem se deu conta disso? É pelos estímulos que vêm de fora para dentro. É moda: Agora faça assim, resolveu-se fazer de outro jeito. A moda vai evoluindo e ela não raciocina a respeito do fato. E dentro de algum tempo o que é que nós temos? Ela está completamente transformada naquilo que num ensaio eu tive ocasião de chamar uma “baldeação ideológica inadvertida”. No caso aí, seria uma baldeação cultural inadvertida; ela se vê completamente transformada por uma baldeação cultural ou psicológica inadvertida por causa desses estímulos que vêm de fora para dentro e que lhe vão impondo modelos, estilos, modos de ser, talvez em desacordo com as tendências mais profundas de seu ser.

Esta situação, Pio XII a descreveu muito bem na sua famosa Radiomensagem de Natal em 1944. Ele diz o seguinte:

O Estado não contém em si, e não reúne mecanicamente num dado território, uma aglomeração amorfa de indivíduos. Ele é, e na realidade deve ser, a unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo. Povo e multidão amorfa, ou como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos. O povo vive e se move por vida própria; a massa é de si inerte e não pode ser movida senão por fora. O povo vive da plenitude da vida dos homens que compõe; cada um dos quais em seu próprio posto e em seu próprio modo é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções. A massa, ao invés, espera o impulso de fora, faz-se um joguete nas mãos de quem quer que desfrute seus instintos ou impressões prontas a seguir, por vezes, hoje esta, amanhã aquela bandeira.

Quem de nós já não presenciou fatos assim?

Da exuberância da vida de um verdadeiro povo, a vida se difunde abundante, rica, no Estado em todos os seus órgãos, infundindo-lhes com vigor incessantemente renovado, a consciência da própria responsabilidade, o verdadeiro censo do bem comum. Da força elementar da massa habilmente manejada e utilizada, o Estado pode também se servir-se nas mãos ambiciosas de um só, ou de vários, que as tendências egoísticas tenham agrupado artificialmente, o mesmo Estado pode com apoio da massa, reduzida não mais do que a uma simples máquina, impor seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo, e em conseqüência o interesse comum fica gravemente e por largo tempo atingindo, e a ferida é bem freqüentemente de cura difícil.

Os senhores têm ai, a descrição eloqüente feita pelo imortal Pio XII, das conseqüências dessa situação a que nós nos chegamos.

Então, alguém me dirá: “Para o senhor, então, qual é a solução? O senhor disse que houve esse estuar de vida quando houve um ruir de estradas. Quando as estradas se reconcertaram a vitalidade desapareceu. Então, em conseqüência, é preciso bombardear as estradas e fazer com que todo mundo se afogue no isolamento. O lugarejo, o lugarejo bem perdido no fundo da selva é para o senhor a unidade da cultura e da civilização. A grande cidade para o senhor é um dragão que devora a civilização. O senhor não oferece caminho no seu raciocinar.”

E a resposta é muito simples: Não é verdade de nenhum modo que é porque esses lugarejos, que é exclusivamente ou principalmente porque esses lugarejos se isolaram, que eles formaram de tal maneira uma vida própria. O Brasil está cheio, infelizmente, de lugarejos muitos isolados que vegetam, dentro dos quais uma cultura, uma civilização, nada de próprio aparece, sedentos por isso da televisão e do rádio, tão amorfos quanto qualquer indivíduo que mora em grande cidade. Circunstancialmente, é bem verdade que a ruptura das estradas favoreceu, mas de um modo ocasional, um outro fato de uma origem muito mais profunda e muito mais importante. E é sobre esse fato que eu passarei a vos entreter durante um instante.

O fato é o seguinte: É que a Idade Média, apesar dos numerosos defeitos que teve — e não há época humana que não os tenha tido ou não venha a tê-los — a Idade Média foi, segundo bem afirmou o Papa Leão XIII, uma época de intensa vida religiosa. E o próprio da verdadeira vida religiosa é — quando ela é bem entendida e bem vivida — é de estimular em cada indivíduo a própria personalidade, é de fazer com que aquilo que nele há de originário, de único e de inconfundível, se exprima com toda força, com toda nitidez.

E em conseqüência, a formação religiosa verdadeira forma homens de personalidade fortíssima. E é por isso que já se pôde dizer que não há nada de mais parecido do que dois santos. Mas ao mesmo tempo, não há nada mais diferente do que dois santos. Porque, se é verdade que eles são parecidos na santidade, é verdade também que em todo o seu modo de ser, a diferença individual ressalta com uma nitidez enorme, formando personalidades que estão per diametrum opostas uma à outra, debaixo de uma porção de pontos de vista fundamentais, de uma importância transcendental.

São Tomás de Aquino nos explica muito bem a razão de ser. Ele nos ensina — na “Suma Teológica” e na “Suma contra Gentiles” — ele nos ensina que Deus quis criar a atual ordem de coisas com um mundo de criaturas diferentes, porque por esta forma, cada criatura tendo uma nota individual característica e própria, que é o traço dominante de sua personalidade; então em razão e em conseqüência disto, cada criatura deve brilhar com toda a sua sadia originalidade, o que não quer dizer nem um pouco extravagância, mas sobretudo não quer dizer cópia, não quer dizer imitação, não quer dizer mentalidades fabricadas em séries. E é pela justaposição de muitíssimas criaturas, que, a seu modo, cada uma reflete a Deus, é por esta justaposição que o homem pode ter durante a sua vida uma noção global do que seja Deus Nosso Senhor. Mais ou menos como um sol que se reflete numa multidão de pequenos espelhos, e então juntando todos os espelhos se pode ter uma certa noção do que é esse sol na sua totalidade.

E, por causa disto, nós chegamos à conclusão de que é fundamental para a execução dos planos da Providência, é fundamental para a própria boa ordem da criatura humana no que ela tem de interno e de toda criatura que aquilo que é dela típico, aquilo que é dela característico, ressalte com toda nitidez. E que, portanto, todas as suas características se desabrochem, se desenvolvam se afirmem e triunfem na luta contra a vida, as suas sadias e as suas legítimas características. E foi exatamente isto que levou à formação desta prodigiosa originalidade da Europa medieval, e é exatamente esse grande bem que nós devemos cultivar e considerar, como veremos daqui a pouco, como sendo o próprio bem fundamental da sociedade.

Como chamar a essa virtude? Eu me perguntei longamente isto. Falo aqui em face de teólogos. Parece-me… — de moralistas — parece-me que a única palavra adequada para exprimir isto, desde que ela se estenda num sentido inteiramente relativo, é uma palavra que se encontra na terminologia eclesiástica, que se encontra especialmente nas escolas morais e teológicas franciscanas da Idade Média, que se encontra, por exemplo, em São Boaventura, e que é a “asseitas”.

A asseitas é a condição de Deus, aquilo que é característico de Deus pelo qual Ele tudo tem de Si, tudo faz de Si e nada recebeu de ninguém. Deus é o único do qual propriamente se pode dizer que Ele tem asseitas, porque é só Deus perfeito, eterno, absoluto, que nada recebeu de ninguém e nada pode receber de ninguém.

Mas nós poderíamos considerar, a par dessa asseitas infinita, dessa asseitas absoluta, nós poderíamos considerar uma minúscula “asseitas”, com quinhentas aspas de cada lado, relativa, contingente, pequenina, que é a pequenina asseitas da criatura humana, que tudo recebeu de Deus, mas que tem uma zona interna da sua alma, que tem um ponto interno de seu ser, que tem uma nota característica de sua individualidade, zona, ponto, nota, que é recebida de Deus, mas que em relação às outras criaturas não é recebida de ninguém. Que é algo que ela tem e que ela exterioriza, que ela manifesta, que ela afirma, com isto ela se dá, mas ela não recebe, e ela é o ponto inicial de um movimento, que é um movimento que nasce dela, e que não é um movimento que nasce de fora dela.

Então, se nós imaginarmos um mundo de asseitates, um número enorme numa sociedade, de individualidades que assim retamente procuram se exprimir e procuram se manifestar, nós teremos então uma vida individual estuante, uma vida individual que, como um jorro fecundíssimo, “pervade” todas as partes da sociedade, todos os domínios da vida pública e da vida privada e que constitui aquela vida do povo, e não aquela situação inerte e morta da massa, da qual há pouco tempo vos falava o Santo Padre Pio XII. Esta asseitas assim configurada — nós passamos então, agora, para uma outra parte de nossa exposição —, esta asseitas o que é que recebe da vida de família? Ela recebe da vida de família, a bem dizer, quase nada. Esta asseitas, quer dizer essa condição nossa, pelo qual cada um de nós é ele próprio. E o mais humilde dos homens é uma obra-prima insondável de Deus, que nenhum outro homem, seja ele incomparavelmente maior, conseguiria realizar daquele modo. Essa asseitas é uma força profunda que está dentro de nós, esta asseitas, enquanto força profunda dentro de nós, evidentemente há algo que tende a sair, que tende a se manifestar, a se afirmar, mas que nasce tímida, que nasce frágil ao mesmo tempo que é profunda e que precisa de toda espécie de apoios. E na vida de família é que a asseitas encontra verdadeiramente seu apoio.

Qual é o apoio de vida de família? É em primeiro lugar a hereditariedade.

A respeito da hereditariedade, fator misterioso, mas que é preciso tomar em conta quando se trata dessas coisas, a respeito da hereditariedade o Santo Padre Pio XII teve também um trecho, um ensinamento de grande importância, nos seus discursos e Radiomensagens se encontra isso, é o discurso de 5 de janeiro de 1941 ao Patriciado e à Nobreza romana. Diz ele o seguinte:

Desta grande e misteriosa coisa que é a hereditariedade, quer dizer o passar de uma estirpe, o passar através de uma estirpe, perpetuando de geração em geração, de um rico acervo de bens materiais e espirituais, a continuidade de mesmo tipo físico e moral, conservando de pai para filho a tradição que une através do século os membros de uma mesma família, dessa hereditariedade, dizemos, se pode sem dúvida entrever a verdadeira natureza sob o aspecto material; mas pode também e deve-se considerar esta realidade de tão grande importância na plenitude de sua verdade humana e sobrenatural. Não se negará certamente o fato de um substrato material à transmissão dos caracteres hereditários. Para estranhar isto, precisaríamos esquecer a união íntima de nossa alma com o nosso corpo, e em quão larga medida as nossas mesmas atividades mais espirituais, dependem de nosso temperamento físico. Por isso, a moral cristã não deixa de lembrar aos pais as grandes responsabilidades que lhe cabem a esse respeito. Mas o que mais vale é a hereditariedade espiritual, transmitida não tanto por esses misteriosos liames de geração material, quanto com uma ação permanente daquele ambiente privilegiado…

E o Papa, então, deixa de falar aqui da hereditariedade, mas biológica, e passa a tratar da tradição.

Então diz ele:

A hereditariedade espiritual, transmitida não tanto por esses misteriosos liames da geração material, quanto com a ação permanente daquele ambiente privilegiado que constitui a família, com lenta e profunda formação das almas, na atmosfera de um lar rico de altas tradições intelectuais, morais e sobretudo cristã, com a mútua influência entre aqueles que moram numa mesma casa; influência essa, cujos benefícios… benéficos efeitos se prolongam muito além dos anos da infância e juventude até o fim de uma longa vida, naquelas almas eleitas que sabem infundir em si mesmas os tesouros de uma preciosa hereditariedade, com o contributo de suas próprias qualidades e experiências. Tal é o patrimônio, mais do que todos precioso, mais do que os bens da fortuna material, que, iluminado por firme fé, vivificado por forte e fiel prática da vida cristã, e em todas as suas exigências elevará, aprimorará e enriquecerá as almas de vossos filhos.

Aqui está, como vós vedes, a definição do que é o interior do lar.

Há uma ação recíproca entre a hereditariedade e a tradição. Uma família, porque tem uma hereditariedade definida, ela, pelo impulso dos fatores biológicos, atuando sobre fatores psíquicos e informados por sua vez pelos valores da fé e da cultura, esta família constitui um pequeno mundo interior próprio; mundo interior no qual cada pessoa que nasce se encontra, a bem dizer, maravilhosamente instalada.

Porque, como aquilo nasceu de um substratum comum existente entre todos os membros da família, aquilo corresponde exatamente à asseitas de cada um no que ela tem de mais profundo. Ela estimula cada um a ser aquilo que ele é. Ela ao mesmo tempo favorece o desabrochar sem timidez das características da família na pessoa, por isso mesmo estimula também o desabrochar das características individuais ligadas às da família. E assim, dentro da família, pela força da hereditariedade, se constitui aquele primeiro ambiente compreensivo, homogêneo, desinibidor, que leva a pessoa a se desabrochar, a se abrir, e a se desenvolver.

Mas ao lado disso há tradição. Cada família transmite o seu modo de ser à outra geração; e com esse transmitir há uma caracterização cada vez mais forte; e com essa caracterização a tradição reforça a vida biológica, a hereditariedade biológica. Porque há qualquer coisa de extrínseco que acaba atuando sobre a própria vitalidade da família, e a depois, ter um reflexo biológico. E assim, tradição e hereditariedade, numa simbiose, produzem o ambiente dentro do qual a família dá o inteiro desabrochar do indivíduo.

Então o que é que acontece? Os senhores devem figurar aí não a pequena família-tronco… — família tronco… — pequena família célula, pai, mãe e filhos, mas uma família-célula numerosa, com muitos filhos. E depois, uma família-célula que está ligada a um número muito grande de parentes de vários graus, de vários lados, que freqüentam a casa e que dão movimentos à casa.

Tudo isto constitui uma espécie de três distâncias. A primeira distância é minha casa, toda ela afim comigo. Uma outra distância é das casas mais distantes do que a família, algo parecidas, algo diversas. E depois, uma terceira distância é a rua, que é o ponto de encontro fortuito e casual de todas as semelhanças e de todas as dessemelhanças. Se eu sou apoiado por essas três distâncias, se eu posso me expandir nessas três dimensões, quando eu chego à rua eu tenho atrás de mim, eu tenho ao meu lado minha parentela toda, que se apresenta nos lugares públicos, nos lugares de diversão, pensando como eu, sentindo como eu, impondo-se como eu, eu enfrento a popularidade ou a impopularidade por que eu tenho um quadro no que me apoiar, eu tenho elementos para expandir a minha asseitas.

Quão diversa é a situação da família minúscula, da família pequena, pai, mãe e filhos. Pai, mãe e filhos vivendo dentro de uma vida de lar, que por ser constituída de poucas pessoas tem poucas variedade; e diria o Conselheiro Acácio que tudo quanto é pouco variado, é monótono. E sendo monótono se tende a fugir; e a gente foge indo para a rua, trazendo a rua para dentro de casa sob o aspecto de duas, três televisões em várias salas, para a gente se esquecer que está dentro de casa e para ter a sensação que está na rua. A gente chega à rua, chega isolado; o menino que chega ao colégio, isolado; o moço, a moça que entra na sociedade, isolada, não tem apoio em ninguém; tem uma moda, tem um modo de ser fabricado pela propaganda ab-extrínseco e que se impõe:

Você, querendo ser, tem que ser desse jeito, porque todo mundo é assim; se você não quiser, há contra você a perseguição do ridículo, a perseguição da caçoada, a perseguição do ostracismo, mas você tem que ser desse jeito se você não quiser sofrer essa tríplice perseguição.”

Resultado: insegurança interior, titubeamento, dúvida, isolamento, capitulação. Ao cabo de dez anos desse fenômeno, ou de vinte, se a pessoa não tiver uma personalidade mais ou menos definida, está com a televisão [ligada], acompanhando o jogo de futebol, está procurando ver no jornal a descrição do acontecimento que presenciou, para saber o que aconteceu etc., etc. Quer dizer, nós temos, então, a destruição dessa asseitas.

[Aplausos]

Entendida assim, conjugadamente com a hereditariedade e a vida de família, entendida assim — eu digo mal, hereditariedade e a tradição — entendida assim a vida de família, nós já compreendemos o efeito que a vida de família produz sobre a formação da opinião pública. A opinião pública não é mais um mero produto do jornal, ou do rádio, ou da televisão. O jornal, o rádio e a televisão continuarão a ter sua influência nesta formação, mas esta influência da opinião familiar, que é o que mais importa a cada um, porque é o ambiente no qual ele está e nós percebemos então que a opinião pública acaba sendo uma contextura dentro de uma tal sociedade. Contextura de opiniões familiares e que a unidade da formação da opinião pública não é mais o órgão publicitário onipotente em face do indivíduo microscópio, mas é o órgão publicitário onipotente agindo, mas encontrando a ação filtradora da família lato sensu, das relações da família que já não são propriamente parentesco, mas são famílias de famílias, num sentido mais vasto. Depois, num sentido menor, da família-célula, e depois, ainda num sentido ainda menor, da família indivíduo.

E nós perceberemos então que uma dupla corrente se estabelece: De um lado é a influência de baixo para cima que influi, que modela a opinião pública e recebe, por sua vez, a ação reveladora dos grandes veículos de formação. Mas, de outro lado também, como o meio de propaganda, para ser eficiente, precisa ser popular, é o rádio, é a televisão, é a imprensa que começam a sofrer a influência da opinião das famílias, ou das opiniões das famílias, de maneira tal a poder conservar verdadeiramente o prestígio. E então nós compreendemos que isto, que é mutável, que é instável, que é falível, que é precário, que é caprichoso como é hoje a opinião pública em qualquer parte do mundo, que isto se torna então contínuo, se torna estruturado, se torna normal, se torna saudável, e constitui para os próprios órgãos de difusão em grande porte do pensamento, uma proteção contra solicitações tantas vezes tirânicas da demagogia.

Os senhores vêem então o que é que é a opinião pública considerada dentro desta perspectiva.

Por que isto se dá assim? Nós devemos pensar um pouco a respeito de um problema que nos aproxima da questão do divórcio, que já se vai divisando ao longo dessas considerações; de um problema que é o da escolha dos cônjuges.

A escolha do cônjuge hoje normalmente — e quando se abstrai desta condição de uma sociedade toda baseada na família — normalmente a escolha do cônjuge obedece a três critérios diferentes. E se aceitarem a expressão, há três escolhas diferentes. Há antes de tudo a escola caprichosa, romântica: “Vou me casar com aquela, ou ela vai se casar com aquele por que viu e gostou”. E o casamento é isso mesmo, quanto maior o impacto, quanto maior a atração recíproca, para essa escola, tanto maior será a felicidade.

Há uma outra escola que diz o contrário: “Cuidado com essa lorota, é preciso pensar muito, depois vem a decepção; pense no dinheiro, porque o dinheiro fica.

[Risos]

Ela é rica? Ela serve para favorecer a sua carreira? Então muito bem. Se ela não é rica, se ela não serve para favorecer a sua carreira por que é que você vai se amarrar com ela? Daqui a três ou quatro anos você não está mais gostando dela, suposto que ela continue a gostar de você, que é uma incógnita que você, na sua vaidade, não quer considerar. Bem, então do que é que vai adiantar esse casamento? Vá atrás dos bens palpáveis.” E é a segunda escola.

Bem, há uma terceira escola. E esta escola é tão mais equilibrada, é tão mais razoável, é tão mais normal. Se nós consideramos como a vida de família através da hereditariedade, através da tradição, através do ensinamento dos bons princípios, que sempre ocupam o primeiro lugar; bem, através desses fatores, modela as almas no que elas têm de mais profundo, e então não é difícil encontrar entre pessoas do mesmo ambiente social, entre pessoas aparentadas em grau mais ou menos distante — porque o casamento próximo, entre parentes próximos é desaconselhável —, mas aparentadas em caráter, em grau mais ou menos distante, ou das tais relações que já não são bem de família nem de parentesco, mas de uma intimidade que se data não se sabe de quando, então aí se modelam afinidades tão profundas, tão estáveis, tão razoáveis, vindas de uma tradição que é de tal maneira comum a ambos, que há como escolher, dando o substratum da boa escolha; e o substratum da boa escolha é uma afinidade preexistente; não decorrente do capricho, não decorrente do mero interesse, mas que tome em consideração o fator simpatia individual, com todos os seus imponderáveis, algo de ponderável dentro da avaliação das situações econômicas recíprocas, mas tudo isto precedido, coexistente e seguido desse grande fluxo da hereditariedade e da tradição que modelou essa profunda afinidade possível entre um número enorme de pessoas, um número enorme de almas.

E então, para efeito da consideração do divórcio, que daqui a pouco nós veremos, nós devemos tomar… ter bem em vista esta idéia: que é as asseitas individual desenvolvida pela família, através do ensino dos bons princípios, da hereditariedade e da tradição, que prepara as afinidades profundas, que não existem no mundo que nós poderíamos chamar da rua, num mundo que nós poderíamos chamar do inteiro isolamento de almas que não tiveram uma família assemística e que se formaram como puderam ao sabor do acaso e que se encontram em lugares de diversão pública, ao sabor do acaso também. E que por isso mesmo fazem casamentos que têm, hélas, como é lamentável dizer, toda a precariedade, todo o incerto de tudo aquilo que é obra do acaso. Fica esse dado, portanto, como que posto de lado para… que nós o retomaremos daqui a pouco.

Vamos passar agora a considerar o efeito da família sobre o conjunto da estrutura social.

Assim como a família produz um profundo entrelaçamento das almas, e através desse entrelaçamento consegue dar à sua própria instituição uma organicidade magnífica, assim também ela tende a transbordar de seus próprios quadros, projetando a sua influência para quadros diversos.

Quais são esses quadros? É normal que parentes tenham afinidade, e portanto, tenham profissões parecidas. É normal que tendo profissões parecidas eles, por isso mesmo, tenham negócios juntos; e é normal que a família, em muitos casos passe a se tornar uma unidade de produção econômica; ou considerada em uma época ou em várias épocas.

Nós tivemos no passado — Funck Brentano o desenvolve muito bem no seu tratado do Ancien Régime — nós tivemos no passado famílias que fundaram verdadeiras dinastias ao longo dos séculos e das gerações. Não apenas, como talvez pensareis: dinastias de reis, dinastias de fidalgos, dinastias de potentados; mas dinastias muito mais modestas: dinastias de relojoeiros, dinastias de fabricantes, de artesão de cristal, dinastias de professores; nesta mesa, ilustrada pela presença de tantos magistrados, me apraz lembrar aqui as dinastias de magistrados, que através dos séculos se sucediam nos bancos em que se distribui a justiça, do alto dos quais se distribui a justiça; dinastias que concorreram poderosamente para o desenvolvimento da vida européia, antes da Revolução Francesa, e que continuaram tais depois da Revolução Francesa em muitos casos e em muitas situações

Funck Brentano cita esse caso muito ilustrativo de um Maître Pinon, lenhador no tempo de Luís XIV. Ele era comprovadamente descendeste de lenhadores e ininterruptamente lenhadores desde o tempo de Carlos Magno; e que tinham abatido as primeiras árvores, nas primeiras florestas da França ainda selvagem.

Quando esse homem atingiu uma idade provecta, digamos, oitenta anos — não lembro qual era a idade no momento — quando ele atingiu essa idade, o rei da França mandou-lhe, precedidos por uma escolta de soldados e corneteiros etc., mandou-lhe umas fivelas de prata e umas insígnias, uma faixa com cores diversas para ele usar nos atos da corporação a que ele pertencia. E vinha juntamente um oferecimento de um título de Barão. Uma tão grande e tão contínua fidelidade ao métier sugerira ao Rei Sol a idéia de levar à nobreza esse homem. E ele deu essa resposta cheia de sabor: “Diga a Sua Majestade que lhe agradeço do fundo da alma, mas eu prefiro ser o primeiro lenhador da França, a ser o último de seus Barões.”

[Risos e aplausos]

Desta unidade de produção, de produção cultural — eu omiti as dinastias de artistas, as dinastias de intelectuais que a Europa conheceu —, desta extravasão da vida de família, constituindo, portanto, uma espécie de familiarização a partir da asseitas, através da família, familiarização de toda a vida social, nós passamos então à constituição dos municípios; o município tantas e tantas vezes expresso em grupos de famílias, que eram ligadas a outros grupos de família, e que constituíam a cidade pequena, toda formada de família de famílias.

E eu vejo algum dos senhores que me dirá mais uma vez: “Está aí de novo a cidade pequena. Não se pode, então, fazer nada de bom na cidade grande?” E eu respondo: Eu conheci São Paulo num tempo — e creio não ser o decano da sala com meus cinqüenta e sete anos, não vou levantar esse problema indiscreto, mas creio não ser o decano — bem, eu conheci São Paulo num tempo em que a cidade, ainda menor do que hoje, ainda não era uma Babilônia, ainda não era uma babel, já era uma bem grande cidade.

A cidade era dividida em bairros, espontânea e organicamente estruturados. Nesses bairros não havia esta seleção que me parece tão antinatural: bairros ricos de um lado e bairros pobres do outro lado, mas conviviam fraternalmente. Por exemplo, no meu bairro, que talvez alguns dos senhores tenha conhecido, o bairro dos Campos Elíseos, a casa do grande senhor, da grande dama ao lado de casas da pequena burguesia e casas de trabalhadores manuais, formando uma espécie de cidadezinha dentro da cidade. Cidadezinha dentro da cidade, onde os apoios, os auxílios se faziam de alto a baixo de família a família, e em que havia uma tal intimidade de família, guardadas as hierarquias e as proporções, que se podia dizer que o bairro era uma verdadeira grande família. Era uma grande família numa cidade já grande.

É incrível, mas naquela São Paulo tão pequena em comparação com a de hoje, a força de atração do bairro era tão grande que quando uma senhora se vestia para ir à cidade, isto era assim uma pequena expedição. E em geral as lojas mandavam os sapatos, os tecidos, os artigos, para serem escolhidos em casa, para as senhoras não fazerem essa violência de se arrancar ao seu próprio bairro.

Por que é isso aí?

Os senhores dirão: “caipirismo”. Quantas vezes o caipirismo não é nenhum caipirismo, mas é a vida real, a vida viva, a vida palpável e em confronto e em contraste com aquilo que é irreal, que é artificial, que é morto e que do alto do seu desdém olha para esse pretexto caipirismo e é que se chama esnobismo.

Esta vida de família, formando a cidade, formava também as regiões. Em quantos lugares essa piramidalização de famílias chegava a formar uma região dominada pela influência de uma certa família; a tal ponto que um grande sociólogo francês, quando se lhe perguntou o que é que ele achava que era uma região, ele disse: “A única definição possível de região é: uma zona dominada pela influência de uma grande família. Isto é uma região”. Hoje, uma região é o trilho de uma estrada de ferro, é uma linha de ônibus; naquele tempo era a força aglutinante de uma grande família.

Os senhores têm então, através disso, a projeção da influência familiar no Estado. Porque se a região, porque se o município, porque se a profissão são dominados pela família, evidentemente qualquer que seja a forma de governo — e sobre a questão das formas de governo falaremos daqui a um minuto — qualquer que seja a forma de governo, evidentemente, o que se dá é que esta influência das famílias vinda de baixo para cima penetra de mil modos, de mil formas o organismo de Estado; e penetrando no organismo de Estado e embebendo-o com sua vitalidade, inspira o Estado. É um élan de vida que orienta o Estado, é um élan de convicções que circunscreve a ação do Estado, o Estado, os próprios dirigentes do Estado fazem parte de famílias, fazem parte dessa pululação de vida, e eles mesmos sabem que não podem a seu talante modificar os rumos do Estado, por que eles estão baseados numa sociedade que não é uma sociedade de meros indivíduos, não é uma sociedade doxocrática, mas é uma sociedade de vida e tradição definidas, e como uma imensa caudal pode certamente marcar os rumos do barco que nessa caudal navega.

E então os dirigentes do Estado, o detentor do poder público traça ou não traça os rumos? Traça-os certamente. Ele tem o poder, o poder está nas suas mãos, mas traça os rumos como traça o capitão que está dirigindo um barco num rio caudaloso, ele traça os rumos, mas no sentido do rio e dentro das margens do rio. É por esta forma que o Estado toma estabilidade, que o Estado toma continuidade, que o Estado toma consistência. Então de baixo para cima, a vida de família até no Estado penetra, e dá ao Estado uma contextura da qual dificilmente, nesses nossos tempos de anorganicidade, nós poderíamos ter uma noção.

É inútil dizer aos senhores que esta vida de família assim concebida oferece os seus inconvenientes. Tudo quanto desta existência se apresenta oferece inconvenientes. Mas não querer ter a vida de família de medo — esta vida de família de que eu falo — não querer tê-la de medo dos inconvenientes é mais ou menos como se uma pessoa fizesse o seguinte raciocínio: “Muita gente tem morrido de câncer no braço; então é melhor cortar o braço para não vir a ter câncer.” Quer dizer, é um non sense. Se esta vida é indispensável, é preciso tê-la, é preciso tratar de ver como evitar esses inconvenientes.

Quais são esses inconvenientes? O maior, para mim, o fundamental desses inconvenientes, resulta do fato de que, por falta de um valor do qual eu falarei no fim desta reunião e do qual eu aludirei apenas de passagem, porque transborda dos limites desta conferência, por falta da presença desse valor a asseitas, em vez de ser um movimento generoso pelo qual a pessoa se afirma, mas afirma-se comunicando, afirma querendo dar-se e não apenas querendo reter tudo para si, a asseitas se transforma num movimento egoístico e invasor.

Eu expando a minha personalidade? Sim. Mas à custa da do outro, que tem que ser como eu, e não pode ser de outra maneira do que sou eu. E se é de um modo diferente, eu o esmago, eu o comprimo, porque eu só quero que seja como eu sou. E o querer que eu seja como eu sou é secundário: querer que sirva os meus interesses, eu me imponho, eu me sirvo de meu prestígio, eu me sirvo de minha influência, eu me sirvo de minha tradição, eu me sirvo de meu dinamismo, eu me sirvo — oh suprema arma! — do meu dinheiro, mas eu me imponho, e todos hão de fazer aquilo que eu quero, por que eu quero, e por que me convém. E o que convém é a plenitude dos bens na plenitude do poder, é a adoração dos outros à excelsitude da minha própria pessoa.

Quando, de um modo confuso constitui, de modo enorme ou de modo pequeno, à maneira de um teto que desaba ou simplesmente de um filete de água que mina aos poucos a estrutura pessoal, isso vai se introduzindo nas vidas de alma de certas pessoas e depois de certas famílias, nós temos, então, a família que se transforma em oligarquia. E a família oligárquica é a família fechada aos valores novos. É a família que recusa a possibilidade de que uma outra família mais recente, mas que através de justos títulos, de benemerências e de valor pessoal se vai afirmando, acabe sentando-se ao lado dela e acabe participando da sua influência e de seu poder. É a recusa de que um indivíduo excepcional de uma categoria inferior possa subir até a condição de um indivíduo de uma categoria superior; é o estabelecimento de um regime de casta, com… à maneira da Índia, inteiramente fechado, de onde nunca se sai, para onde nunca se entra e que se conserva intacto através dos séculos.

A organização familiar como eu descrevi pode ser comparada às águas de uma piscina, renovadas discretamente, mas certamente, de maneira a evitar estagnação. Não são nem a torrente revolta do nouveau-richismo, da aventura e da improvisação, nem a estagnação que recusa a todos os valores novos; mas são a família com o seu desembaraço, com a sua naturalidade, aceitando valores novos sem temer, por que ela se sente segura daquilo que é uma de suas grandes forças: a força de aglutinação. E aquilo que não tem força de aglutinação, não vive.

Por outro lado, esta organização da família assim concebida, esta organização evidentemente impede um certo tipo de família que se transforma num colete de ferro para seus membros e que não admite a exceção. Toda família viva joga com a exceção com facilidade, com desembaraço. Não teme a exceção. Se alguém quer seguir outra profissão, se alguém quer emigrar dos círculos de família para outro local, isto é livre, é facultativo, é concedido de boa vontade, contanto simplesmente que isto fique numa linha de exceção mais ou menos rara, ou mais ou menos freqüente, de acordo com os jogos imprevistos de tudo quanto é verdadeiramente vital.

Esta organização assim, como é claro, se coaduna com qualquer forma de governo: com a forma de governo monárquica, com a forma de governo aristocrático, com a forma de governo democrático, ou com uma conjugação em modos variados dessas várias… dessas três formas de governo. Di-lo a razão, que mostra logo, desde logo, que a organização da família não é incompatível com a forma de governo; di-lo a experiência histórica que nos mostra — para não irmos além da idade Média — cidades de forte base familiar, ao mesmo tempo, uma democrática, outra aristocrática, outra com certo fermento monárquico. Ou então, as grandes monarquias da Idade Média na base familiar. Esta questão portanto nada tem a ver com o problema das formas de governo.

Assim, minhas senhoras e meus senhores, fica dito o que deveria dizer-se para compreender o que é uma sociedade vital, o que é que é uma sociedade familiar, o que é que é esse fluxo da vida, partindo das profundidades do indivíduo e subindo até às culminâncias do Estado ou até os largos horizontes da opinião pública, modela um tipo de sociedade do qual dificilmente se tem uma idéia no dias que correm.

Resta-me agora abordar a questão do divórcio. Divórcio e não desquite, bem entendido, porque a configuração dos dois casos é inteiramente diversa. E em todas as épocas haverá lamentavelmente necessidade de separações, mas não de separação com novo casamento que caracteriza o divórcio. Vamos agora pensar no divórcio.

É um pressuposto de toda afirmação antidivorcista, que já foi aludido aqui em conferências anteriores e que não me cabe no momento demonstrar, que é impossível, uma vez concebido o divórcio, circunscrevê-lo a casos poucos numerosos. Qualquer razão que se admita como título suficiente para o divórcio, torna fácil o pretexto para que os cônjuges desagradados um do outro procurem configurar aquela situação e obter o divórcio.

O adultério, por exemplo. A opinião pública não tem censuras definidas para o adultério praticado pelo marido. Marido e mulher querem separar-se, basta que a mulher acuse o marido de adultério, e ele declarará que sim, e faz-se o divórcio. Um acordo sobre a divisão de bens será suficiente para manter a mútua combinação num caso desse. Quer dizer, não havendo diferença nesse ponto, faz-se o divórcio e acabou-se. Quantas outras maneiras há de fraudar a lei e de fazer um divórcio que acaba sendo pouco mais ou menos um divórcio por livre consentimento.

Imaginai agora uma família aonde existe esse divórcio por livre consentimento, onde existe a possibilidade desse divórcio por livre consentimento. Esta possibilidade já trinca a fundo a confiança de um cônjuge no outro. Ele sabe que ao sabor dos caprichos, que na sentimentalidade humana são tão vários, e tão inesperados, é possível que aquela existência que se conjugou à dele e que deveria à dele estar conjugada na máxima intimidade para todo o sempre, que aquela existência poderá se separar de um momento para outro. Em muitas ocasiões ela ou ele viverão de sobressalto e na espreita; e com isto não haverá aquela confiança completa, aquela fusão completa de personalidade, que faz exatamente com que o lar, constituído por cônjuges que se escolheram bem, seja capaz de dar aquela harmonia, aquela homogeneidade que ela contém como a condição para a asseitas se desenvolver.

E é assim mesmo nos lares aonde o divórcio não existe, a perspectiva do divórcio vai ser um veneno que vai, não direi estancar, mas ao menos prejudicar profundamente e em incontáveis lares aquela harmonia, aquela coesão que são indispensáveis para que a hereditariedade e a tradição se definem, se formem e atinjam a sua plena expansão.

Por outro lado, imaginem o divórcio. O divórcio foi concedido, e a esposa se casa com outro, e o esposo se casa com outra, e restaram filhos do primeiro casal. Qual é a homogeneidade que se pode querer entre o filho da outra ou o filho do outro, no lar onde o menino ou a menina vê alguém que substitui seu pai ou sua a mãe, que é o rival feliz, que é o rival vitorioso, que ali entrou e se impôs, e depois vai para o lar — bem, o outro lar — de seu pai, sua mãe e encontra ali um ou uma rival, que também bem instalado? Qual é, nesta interpenetração de hereditariedades, de influências nascidas da briga, nascidas do conflito, qual é a harmonia possível? Qual é o entrelaçamento de solidariedade possível? Qual é a asseitas possível?

Não, a família assim retalhada, costurada e descosturada ao sabor de paixões, ao sabor de impulsos, ao sabor de caprichos, de circunstâncias várias, esta família assim é como uma célula que se corta, é como um ser vivo que se corta. Se produzir frutos, serão frutos amargos, minguados e temporões. Dela não pode sair esta rica vida individual que é a condição para a vida coletiva, para a vida da sociedade, de maneira que ela não seja massa, mas ela seja verdadeiramente um povo. Ou o divórcio e a morte ou a indissolubilidade conjugal e a vida da sociedade

[Aplausos]

Vós vereis agora, no seu conjunto, o projeto do Prof. Orlando Gomes como retalha a família. Não só sob o pretexto de uma anulação de casamento por erro de pessoa — ele virtualmente introduz o divórcio entre nós —, mas outras medidas que ele estabelece visam igualmente a desconjunção entre os cônjuges e o esquartejamento da vida de família.

Considerai a preferência dada por ele à separação de bens. De tal maneira que, salvo declaração expressa em contrário, se presume que o casal se constituiu com base na separação de bens. Ninguém que tenha critério pode ser contrário de modo absoluto à separação de bens. Há circunstâncias que impõem essa separação, mas é… são imposições tristes, necessárias, mas tristes. O normal da família é que onde cada um se dá inteiramente ao outro, não fique, como uma arrière pensée, uma trouxa com ouro que deve valer só para um e não deve valer para o outro. A comunidade de pessoas trás naturalmente a comunidade de bens como o fato geral, como o fato habitualmente, como o fato normal, compreendendo ou comportando exceções, é bem entendido.

Ora, o projeto do Prof. Orlando Gomes, exatamente o que pede é uma preferência declarada pela separação de bens.

De outro lado, como seria preciso — e eu não vos ameaço de fazer uma outra conferência para estender este ponto de que eu agora vou tratar — como numa família bem constituída, aonde o homem entra com o valor das suas qualidades de homem, e a mulher entra com o incomensurável valor das suas qualidades mais subtis de compreender, mas tão importantes, tão profundas, e tão indispensáveis do espírito e da afetividade verdadeiramente feminina, como numa conjunção assim de vida, tudo na natureza prepara marido e mulher, máxime no casamento constituído dentro da estrutura familiar de que eu acabo de falar e com as garantias e cautelas que essa estrutura permite, como tudo postula uma fusão completa de intenções e uma entrega de cada um de todas as suas possibilidades, para fazer do melhor modo possível aquilo que lhe é próprio fazer.

Eu me lembro aqui no momento, de uma carta do grande Joseph de Maistre à sua filha a duquesa de Montmorency. Ela era um pouco feminista. E escreveu ao pai dizendo que não compreendia porque é que uma mulher não podia ser diplomata, não podia ser isto, aquilo, ou aquilo outro. E por que então não se franqueava à mulher toda as carreiras. E ele respondeu não sem muito espírito: “Minha filha, é verdade que as mulheres podem fazer muitíssimas coisas que fazem os homens. Mas os homens não podem fazer esta coisa extraordinária que uma mulher faz por obra da natureza e que uma mulher continua, por obra da manutenção, do calor vital dentro do lar, a mulher uma obra-prima que um homem não é capaz de fazer: a mulher faz um filho.”

Esta afirmação indica bem a conjugação dos dois destinos. Ela indica bem como esses destinos se devem fundir e como, portanto essa bipartição, esse desconjuntamento da autoridade, parte na mão de um, parte na de outra, quase dá a impressão de duas espadas que se dão a um e a outro para duelarem e para se agredirem, em vez de ser um instrumento de harmonia e de cooperação — quer dizer, que o casamento é instrumento de harmonia e de cooperação.

Por outro lado, nós temos a torpíssima disposição do Código, que confere à concubina os direitos, uns tantos direitos, nascidos do fato do concubinato.

Ao meu lado o Desembargador Ciro Cintra, que se referiu, que tratou desse assunto com tanta coragem. Concordar que a união precária, ilícita, enquanto ilícita seja geradora de direitos, é subverter toda ordem moral. Mas é mais ainda, é afirmar que a relação entre homem e a mulher, relação legítima segundo a natureza, e que o Sacramento torna sacrossanta, que esta relação pode existir, não para constituir esta família asseística, vital de que eu acabo de falar, mas uma união precária que a qualquer momento se desconjunte. E assim se procura colocar como base da sociedade o caos, o nada, o efêmero, o pior dos efêmeros, que é o efêmero que trás em si os germens de desagregação e morte daquilo que é lícito.

Nessas condições, nós vemos que o divórcio, no fundo dessa sociedade que eu descrevi, aparece como uma coisa monstruosa. Ele é a negação de tudo, ele é a destruição de tudo. É só isto? Quando nós imaginamos uma sociedade sem asseitas, sem vida familiar quente e estuante, nós temos, como foi dito várias vezes, uma sociedade dirigida de fora para dentro, nós temos uma massa. Essa sociedade, pela fraqueza da matéria-prima de que ela trata, essa sociedade vai ser obrigada a se deixar dirigir cada vez mais, apela cada vez mais para o poder público, porque só o poder público tem força, só o poder público tem meios de se impor, tem meios de dirigir e de orientar. E o resultado é que essa sociedade vai se tornando cada vez mais invasora, ela vai se tornando cada vez mais prepotente, e o fim desta evolução é, evidentemente, o comunismo. E então nós compreendemos como o totalitarismo e o comunismo são o resultado normal da aprovação desse Projeto Orlando Gomes, contra o qual com a cooperação inestimável de vários Srs. Ministros do Tribunal de Alçada, Desembargadores e de um ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal está lutando a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.

Vós acabais de ver, minhas senhoras e meus senhores, vós acabais de ver nessa conferência que se estende para já sessenta minutos, setenta minutos — e que aqui, agora, encerro —, vós acabais de ver o que é que significa no lema desta Sociedade a palavra “Família”. Não é uma palavra vazia, não é uma pura fórmula abstrata, por mais valores que nessa fórmula possa se conter. É um fermento de vida, é uma condição de existência, é um fator fundamental de progresso, é o próprio hálito, é o próprio sopro de tudo quanto na sociedade se afirma, se desenvolve, tende para o futuro trazendo atrás de si os valores da tradição, resiste à morte e se fixa realizando uma dessas obras históricas que só sociedades assim sabem de fato realizar. Só o que é natural é que vive, só o que é natural é que progride, e se nós temos esse fato assombroso de que a Europa, pequena península da Ásia, a Europa entretanto se transformou em… ao cabo de alguns séculos, no continente que deu o maior deslumbramento de valores culturais e técnicos que a humanidade conheceu, e engendrando, depois, esta América que lhe acompanha o passo e na qual a Europa se ampara e que por sua vez ela se ampara na Europa para o prosseguimento da civilização cristã nos dias que vivemos, se tudo isso se deveu, se tudo isso a Europa teve, ela o teve porque ela teve uma organização profundamente familiar, organização, vida profundamente familiar de que poderia haver exemplos a granel.

Entre os quais, por exemplo, a base familiar do mais famoso exércitos dos europeus. O que é o exército alemão, quem foi ele mesmo no tempo do nazismo, nos infelizes tempos do nazismo, o que foi ele a não ser o exército de uma nação militar apoiado, estimulado pelas famílias de yunkers da Pomerânia, do resto da Prússia? Assim, portanto, o que temos é: o trilho, o valor da instituição familiar. E nós lutamos pela sobrevivência docemente, nós lutamos pela sobrevivência da civilização cristã, quando com todas as veras da nossa alma, nós da direção, e vós meus caros jovens de São Paulo e de tantos países, tantos estados do Brasil aqui presentes, vós os apresentais num trabalho ao qual eu presto homenagem com todo o meu coração. Vós os apresentais deixando interesses privados, deixando estudos, obtendo acomodação nos vossos empregos, vós apresentais nas praças dessa cidade e de outras do Brasil com o abaixo-assinado tão festejado, tão aplaudido pela nação brasileira, afirmando que o Brasil não deseja a reforma do código civil do Prof. Orlando Gomes.

[Aplausos]

Não me resta senão uma palavra a dizer: tudo o quanto aqui foi dito a respeito da família e que é a mais entusiástica e também a mais meticulosa glorificação desse principio vital da sociedade; tudo quanto foi dito, entretanto, por todo o princípio anterior. Não é este nem o lugar nem o momento de dizer que todo o bem que há nas sociedades humanas só atinge sua plenitude, só se preserva de perigosíssimos fatores de deterioração com algo que eu diviso aqui com meu olhar enlevado, com toda a força da minha fé, diviso de longe, com todo o amor: é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, Esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Olho aqui para o Santuário, olho aqui para o sacrário, olho aqui para a Eucaristia, que é o vinho que gera as virgens e que é pão dos fortes, que inspira a vida de família, o senso do sacrifício necessário para a realidade cotidiana tão sublime e por vezes tão prosaica, que a vida de família exige. Olho para o sagrado lar de Nazaré, para Jesus, para José, a Sua Mãe Santíssima, Maria. Olho para uns, para outros, como um torno no qual não entro, por que está além do meu assunto, está fora do meu assunto, mas eu quero, ao encerrar meu assunto com o olhar este termo ideal e com os lábios lembrar esta frase: “Vós, e só vós é Senhor Jesus, sois o caminho, a verdade, e a vida.”

[Aplausos]

(Ministro Pedro Chaves: Antes de encerrar esta sessão, quero agradecer mais uma vez a honra que me foi conferida de presidi-la. Quero agradecer a participação de tantas senhoras, de tantos cavalheiros e desta Sociedade, que é nossa esperança, que recebeu aqui também o apoio da presença de representantes do clero católico, da magistratura togada da nossa terra, de nossos pensadores, dos nossos chefes de família, de nossas mães de família, que representam todas estas virtudes que foram postas em relevo pela palavra admirável que acabamos de ouvir do Professor Plínio Corrêa de Oliveira. O que eu lamento apenas é que tenha passado tão depressa esta hora em que Sua Exa. nos tenha encantado com a sua palavra e com as suas lições – uma hora e um quarto – e lamento ainda mais a posição que fiquei colocado de suceder Sua Exa.

Com estas palavras, se Sua Exa. me permite, eu encerraria a seção.)

 

Mais uma vez eu devo agradecer a bondade do Senhor Ministro Pedro Chaves. Eu peço vênia ao Presidente da sessão para comunicar ao plenário a situação atual de nossa campanha e abaixo assinado.

Nós estamos no momento com 685.000 assinaturas de brasileiros opostos ao projeto O. Gomes. A campanha está durando hoje, atingindo 28 dias em 57 cidades do Brasil. As assinaturas recolhidas em São Paulo são no total de 202.500. Eu vos convido a todos para a próxima sessão em que, com chave de ouro, vai ser encerrado este ciclo de conferências brilhantes em tudo, exceto no que diz respeito ao dia de hoje, este ciclo de conferências que já fulgura e vai fulgurar para o Brasil inteiro, pois que estas conferências vão ser objeto de uma larga difusão pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.

Eu vos convido para vir a esta sessão, mas o convite é puramente formal, é apenas uma gentileza para o ilustre Ministro Pedro Chaves, porque, quando se sabe que é ele que vai falar, todo mundo se sente convidado.

(Aplausos)

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1 No áudio está: “se esta moça”.

Auditório da Federação do Comércio de São Paulo